Os clubes
Sendo a mesa uma só e as experiências gustativas todas farinha do mesmo saco que é a gastronomia, não percebo - acho que nunca irei entender - porque é que cozinha e vinhos se fecham em divisões separadas. Uma estanqueidade que seria total, não fora a necessidade da bolachinha para apaziguar o palato nuns casos e da aguinha de uva temperada a álcool para melhor escorregarem as iguarias em prova, nos outros.
Para quem participa nos dois mundos - o dos que provam, questionam, interrogam as preparações culinárias e o dos que provam, questionam, interrogam as preparações vinícolas - torna-se evidente o quase divórcio entre gostos, a menorização de um face ao outro. Apelidar-se um vinho de "gastronómico" é uma quase - e propositada - ofensa, sendo a qualidade que resta na ausência de grandes laudas ou brilhantes adjectivos. Por outro lado, "grande vinho..." (aqui se evitando os mais anedóticos "está f'esquinho!" ou "granda pomada!") é superlativo corrente para a facção culinária. Andam assim formados dois clubes que muito se ignoram e que só perdem por isso.
Não me parece restarem dúvidas que os vinhos feitos com castas portuguesas (deixemos de lado as discussões históricas; consideremos portuguesas as que há muitas décadas nos habitam os terroirs e o gosto, moldadas não só pelo país geográfico mas pelo homem) atingem a maioridade quando bebidos à mesa, em conjugação com a comida certa.
(Por "comida certa" entenda-se a que melhor entrelaça odores e sabores com os seus correspondentes vínicos. Entenda-se igualmente a liberdade que cada um deverá ter na definição - que será sempre subjectiva - de "melhor". Finalmente, entenda-se que o que defendo como imprescindível é a adição da razão à emoção no acto de escolher)
São vinhos cujas características genéricas deixam pouco espaço para a tranquilidade de um final de tarde, a amenidade de uma conversa, a ausência de provocação que as cenas de ficção nos oferecem. Acidez, mineralidade, adstringência são algumas das presenças frequentes e desconcertantes. Só melhoram se complementadas, não pela opinião do enófilo mas pelas sensações provocadas pelas características da comida, opostas ou paralelas.
Faria assim sentido que, para além dos marcadores óbvios, compreensíveis, acessíveis e dos apontamentos mais ou menos metafóricos, metafísicos, sumamente abstractos e ofensivamente elitistas, às anotações de prova, aos conselhos de escolha, aos comentários de ocasião se juntassem sugestões de companhia, de harmonização. Em suma, que se frizasse a idiossincrazia da gastronomia portuguesa que interliga obrigatoriamente bebida e comida, líquido e sólido, garfo e copo.
Faria igualmente sentido o contrário sentido: que a um prato regional, a uma receita de território, se apusesse sempre o vinho com as características complementares que o realçasse e, em parelha, melhor revelasse a região que os gerou. Porque também a comida - no caso, a nossa comida - melhor brilha se acicatada pelas sintonias do vinho, pelas suas delicadas ou fortes, subliminares ou expressivas, leves ou profundas qualidades.
Experiência a revelar quem somos, de onde viemos, a massa geofísica e social que nos moldou, o acto de comer em Portugal é, para além de um momento de convivialidade, de partilha, de dádiva e recepção, um tempo de afirmação e recriação do ser português. Será? Teremos a disponibilidade para o aceitar e recriar em consonância?
Num presente em que, cada vez mais, dependemos economicamente de quem nos visita e de quem nos compra, não será este nacionalismo gastronómico essencial para, afirmando a nossa diferença e unicidade, melhor nos explicarmos, melhor nos vendermos?
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