Acordo Autográfico: um jantar luso-brasileiro no Atlântico



Miguel Laffan, chefe executivo do Atlântico Bar & Restaurante, recebeu Álvaro André, o seu homólogo da Tasca Filho d'Mãe (Rio de Janeiro, Brasil),  para a organização de um jantar com um menu conjunto. Pensado como homenagem à especificidade e diversidade da cozinha brasileira, serviu igualmente como demonstração das qualidades dos dois chefes e do restaurante, situado no Monte Estoril e adstrito ao Intercontinental Hotel, com magnífica vista para a baía. Como terceiros companheiros, dois produtores de vinho, a Casa de Cello e a Quinta da Casa Amarela que souberam acentuar, com os vinhos escolhidos, as combinações de sabores desenvolvidas na cozinha.

Os cozinheiros e produtores de vinho responsáveis pelo evento.
Da esquerda para a direita:
Álvaro André, Gil Regueiro (Quinta da Casa Amarela), João Pedro Araújo (Casa de Cello) e Miguel Laffan 

Permitam-me uma prévia - e curta... - reflexão. "Cozinha de autor", é a designação habitual que, no presente, se utiliza para caracterizar o produto de um determinado restaurante. Para além de pretender realçar o trabalho do chefe executivo em detrimento do resultado servido, a adjectivação perca por razoavelmente imprecisa: em todas as cozinhas sem excepção, a construção de um prato é muito mais o somatório da combinação de técnicas, de elementos e de memórias, do que uma criação a partir do nada, pelo que se tornaria bem mais interessante procurar vocábulos que melhor definissem o resultado do que o seu organizador. "Autores" são todos na sua cozinha - autores únicos do modo como recombinam o que vem de trás. "Autor" sou eu quando cozinho... e, só por si, não será essa a condição que transformará a minha cozinha num negócio.

Atentemos no exemplo dos anos 70 franceses do século passado: quando ainda não ambicionariam mais do que tornar o seu restaurante num referência para os passeantes de França, os jovens cozinheiros do que viria posteriormente a ser conhecido por "nouvelle cuisine", tinham essa noção de que a oferta era mais importante do que o seu preparador - a sua cozinha não era de "autor", antes "do Sol", "das Estações", "de Emagrecimento"...

Ora no presente jantar foi a essa humildade que assisti por parte dos dois cozinheiros, dando a primazia à gastronomia brasileira. Provocados pelos seus sentidos, pelas suas memórias, pelas suas experiências recombinaram aquilo que é igualmente resultado de anteriores recombinações. O que é a cozinheira brasileira actual (o que são todas as cozinhas) senão o resultado da fusão de experiências e modos diversos, promovida pelas múltiplas levas de colonização, escravidão, imigração, da descoberta e adaptação dos produtos locais, da integração de novos produtos, em suma, da fusão gastronómica que acompanha o ser humano desde os primórdios, desde que o fogo permitiu a alteração dos sabores e as comunidades se fizeram exploradoras?

Foram estes objectivos que as palavras de Álvaro André sumarisaram ao descrever os três pratos com que contribuiu para o menu (a homenagem às diversas comunidades que construíram o país através de pratos que representam os alimentos e as técnicas por elas utilizadas) como antes já o tinha explicado Miguel Laffan ao definir os seus como um olhar estrangeiro sobre algumas das mais emblemáticas criações culinárias brasileiras.

Álvaro André

Quanto aos vinhos servidos, a sua especificidade e qualidades justificariam por si um post e eles dedicado. Oriundos de três regiões vitivinícolas diferentes (Casa de Cello - Vinhos Verdes e Dão; Quinta da Casa Amarela - Douro) trouxeram o que deveríamos esperar de todos os vinhos contemporâneos portugueses: uma presença forte do terroir e das características das castas e a marca das ideias do seu produtor. Registo, com agrado, a cada vez mais unânime defesa, por parte dos produtores nacionais,  do uso prioritário das castas portuguesas e a consciência de que a conjugação de vinho e comida proporciona um valor acrescentado à experiência gastronómica, sendo o sabor e o gosto que se obtêm superiores à da soma das parte.

Sobrevoemos então o servido:

Para entrada, um "pastel de vento" que me fez voltar às caminhadas pelas ruas interiores de Copacabana, à pura felicidade de flanar com um calor bom na pele, as melodias de Jobim na imaginação e a beleza da cidade nos olhos, coisa mais linda a inibir-nos o receio. Pastel  simbólico, que de -preambular cobertura sardónica, a tapar a vista dos sacrossantos feijão e couve, passou a personagem principal, pelo sabor e textura que agregou ao creme de feijão. Uma delícia, a pedir repetição em novas refeições. Ou prova prolongada em meio de tarde, com chope e vista de mar.

Creme de feijão preto, creme fraiche, raspa de laranja e pastel de vento (Miguel Laffan)

Ainda como entrada, uma homenagem aos povos africanos que, infamemente e contra vontade, às terras de Vera Cruz aportaram , de modo perene deixaram a sua marca na cozinha regional nordestina, especialmente na Bahia. Comida de santo, tradicionalmente confeccionada para homenagear orixás, especialmente Oxum, a orixá dos rios e cachoeiras, o bóbó conjuga a proteína do camarão com os carbo-hidratos da, macaxeira/mandioca, adoçados pelo azeite de dendê (óleo de palma) e aguçados pelo gengibre e é, de facto, comida de deuses. O camarão individualizado, panado, aumentou a gula e o gosto e constituiu um bom primeiro cartão de visita.

Camarão crocante com creme de bóbó (Álvaro André)

Quanto aos vinhos, ainda que a harmonização não me parecesse totalmente conseguida - se foi a complementaridade perseguida os flavours sentiram-se dissonantes, se foi a oposição todos os sabores presentes se mostra
m demasiado individualistas, sobrepondo-se entre si - a sua qualidade remeteu-os para o caderninho onde assento os contactos para novas provas. Muito bem aparecidos.

O San Joanne Escolha da Casa Cello:
Trajadura, Arinto e Avesso com boa acidez e mineralidade.
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Depois o prato de peixe com um outro prato clássico da culinária brasileria (nordestina): a moqueca. Ainda que alguns autores refiram a existência noutros estados de pratos de nomes ou propriedades aproximados (no Pará, no Amazonas) é na Bahia que se assume como uma das preparações culinárias cimeiras. Presente na grande maioria dos livros de Jorge Amado (e como a sua obra é um referencial da cultura baiana, muito especialmente da sua gastronomia!), este guisado de peixe ou marisco perfumado com azeite de dendê, coco e pimenta (no Brasil, "pimenta" são as variedades da espécie Capsicum frutescens; a pimenta preta "portuguesa" é "pimenta-do-reino") foi, na interpretação de Miguel Laffan, apresentado dissociado, com a peça de bacalhau pousada sobre o puré criado com aqueles ingredientes. O apontamento de tempura negra (que nos pareceu ser de feijão verde mas que na ementa vinha indicado como de quiabo) acrescentava textura e um lado de surpresa / curiosidade / descoberta  que torna a cozinha tão mais interessante.

Moqueca de bacalhau com pimenta de cheiro e quiabos em tempura (Miguel Laffan)
O vinho escolhido como harmonização, um Dão de Encruzado e Bical, mostrou-se à altura, ainda que o tempo de espera entre o serviço do vinho e o do prato tenha provocado uma alteração de temperatura suficiente para lhe modificar as características e assim modificar o equilíbrio pretendido.

Quinta da Vegia, Vinha de Santa Ana, 2016
Castas: Encruzado e Bical
"Pururuca"  é pele de porco desidratada e frita. Foi essa uma das atracções do prato de carne, um pedaço de barriga de porco, com a pele bem crocante (explosivamente crocante...!), acidulada pelas lâminas de maçã verde que escondiam um pedaço de gel de caipirinha que acrescentava a evocação "do boteco" que complementava a homenagem às diversas comunidade imigrantes europeias pretendida pelo autor. E a farofa? Farofeiro me confesso...

Prato de carne - Barriga de porco “ pururuca “ carpaccio de maça verde e caipirinha (Álvaro André)
Para harmonização, um Douro de perfil contemporâneo, com o estágio prolongado em madeira nova a deixar a sua marca: notas complexas no nariz a prologarem-se na prova - frutos do bosque, chocolate, especiarias - e a pedir carnes gordas, com o tostado da reacção de Maillard bem presente. Um grande vinho, eventualmente prejudicado pelas notas ácidas da maçã.

Elísio, 2016. Um Douro "clássico", de homenagem ao patriarca da família.
As castas mais representativas de reigião (Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz)
e um estágio de 18 meses em barris de carvalho novo
Nas sobremesas, prolongou-se o prazer com a doçura brasileira (bem) aplicada à arte doceira.

Álvaro André serviu um bolo de fubá (farinha de milho fina) em versão tarte, conjugado com cocada (coco, calda de açúcar e gemas) aromatizada com erva-doce, em homenagem às populações indígenas.

Saborosa tarte, com o açúcar controlado pelo amargor do mirtilo.

Bolo de fubá com cocada de erva doce (Álvaro André)
João Pedro Araújo escolheu para este prato uma das suas produções emblemáticas: o "Passi", vinho feito a partir de uvas (Loureiro e Alvarinho) colhidas antes da total maturação e desidratadas (num processo que dura 3 a 4 meses). Acidez e alguma doçura, com teor alcoólico baixo, enrouparam-se muito bem na estrutura e textura da base, aumentando a complexidade na prova comum.

Gostava de testar este Passi com charcutaria de carnes brancas e com um São Jorge de boa cura. Só para confirmar ou abandonar suspeitas...

João Pedro Araújo  e o seu "Passi", um "colheita antecipada" que atrai

Finalmente, em apoteose, um "Romeu e Julieta" em versão West Side Story, com a força da história (a tradição culinária) a ser aumentada, repensada com a força da música (no caso o uso de um queijo diferente do original e da apresentação). Casamento feito nos trópicos mas que, como os de Vegas, é válido noutras localizações, a conjugação de queijo branco (o queijo de Minas talvez o mais emblemático) com goiabada é uma das ligações mais fabulosas que conheço. Resume duas linhas de sabor - o da goiaba, exótico, a saber ao cheiro da terra; o do queijo, acre, ácido - simultaneamente antagónicas e complementares, o feminino e masculino feitos casal.

Laffan teve a arte de, subtilmente, fazer um novo com aquele velho, redesenhado-o, anulando formas, criando outras, acrescentando texturas sem anular as existentes. O queijo - de cabra segundo o cozinheiro, de ovelha segundo a legenda - nacional soube demonstrar-se parceiro à altura. Mais do que imitação do original, foi original.

Parabéns.

Romeu e Julieta com queijo da serra e goiaba (Miguel Laffan)
Para tanto amor, o Vintage de 2017 da Quinta da Casa Amarela foi mais amor. Muito bem, tanto com o queijo como com a compota.


Gil Regueiro (Quinta da Casa Amarela) partilhando histórias e o seu Porto Vintage 2017

Miguel Laffan at Atlântico Bar  Restaurante
Avenida Marginal nº 8023 (23,23 km)
Monte Estoril, Portugal
Tel: 21 829 1049
Horário: 12:30 – 15:30, 19:00 – 10:30

Casa de Cello
Lugar de Cello, Mancelos
4605-118 Amarante
Tel: +351 226 095 877 ; quinta@casadecello.pt

Quinta da Casa Amarela
Riobom
5100-421 Lamego
Tel: 254 666 200 ; Tlm.: + 351 962 621 661 / +351 965 047 650 ; quinta@quinta-casa-amarela.com

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