Numa Esqina de Lisboa, com a Madalena a ajudar

Esqina Cosmopolitan Lodge - Cocktail bar (Fonte: site do hotel)

Vivemos uma Lisboa em permanente sobressalto de descoberta. Apesar do passado, a maior parte do tempo não somos nós os descobridores, sendo antes acessório inesperado das very typical locations. O que para nós é estafamento - lugares cansados de o ser, poisos cenografados por despreparados arrivistas, locais em poses alheias e pronúncias estranhas - é ainda objecto de espanto para o outro, vindo de paragens mais cinzentas ou mais limpas, mais ordeiras ou de outra escala.


A Baixa é uma matriz de cordões humanos, em movimento lento à espera do semáforo verde, do término da fila de acesso ao eléctrico ou ao elevador, da disponibilidade da cadeira vizinha do Pessoa. Bandos homogeneizados por chapéus de chuva solitários seguem guias à la minute, em busca de um tempo que julgam presente mas que não passa de reprise, desfigurada encenação de um passado ignoto.

Apesar do optimismo oficial que continua a medir a qualidade de vida dos cidadãos pela quantidade de imposto arrecadado pelo Estado, torna-se palpável a inquietude de muitos, os directamente prejudicados no seu lazer, no seu descanso, na sua vontade de permanecer na cidade onde nasceram, os premonitórios, os que leram a História alheia e sabem que a mesma insiste em repetir-se quando idênticas se tornam as circunstâncias.

Há quem se aperceba ser esta inquietude transmissível a quem nos visita, especialmente a quem recusa o rótulo óbvio de turista e procura aquilo que só um verdadeiro viajante sabe existir: o intocado pela usura, o lentamente evoluído, no seu tempo e com o seu tempo. Com tanto ruído não é fácil encontrá-lo, ainda que subsista: encontrá-lo é, quase sempre, fruto da descoberta acidental ou de um serviço bem pago, bem executado.

Há alguns anos, dois amigos decidiram prestar esse serviço sob a forma de unidades hoteleiras estrategicamente colocadas, disponíveis para orientar os seus clientes pelas calçadas menos escritas, pelos usos mais pessoais, pela privada cidade pública.

Esqina Urban Lodge foi o primeiro, a que se seguiu, este ano, o Esqina Cosmopolitan Lodge.


No início da colina de São Jorge, adoçado à rua da Madalena, oferece ao olhar dos seus o horizonte Sul e Poente, a maré de telhados, ondulada expansão da caminhada da cidade medieval por vales e colinas, a racional teia pombalina e a luz, a luz única que nos bana, nos molda, nos melancoliza, nos enche de mel. Viajantes com uma "paixão pelo design, pelo detalhe, artesanato, cultura e boa vida" são o alvo potencial. Viajantes que também gostem de comer, digo eu - poderá quem com os pratos mantém a frieza dos indistintos estar um dia disponível para a paixão?

No piso térreo, o restaurante oferece uma ideia da gastronomia da cidade. Seguindo o mesmo processo de ampliação e adaptação de muitos dos que nos fundaram, ocuparam, visitaram, habitaram, vindos de longe e com outro olhar, o que nos é oferecido conjuga duas perspectivas do mundo - a local e a exterior - para realizar mais uma cozinha de síntese. O Chef responsável pelo menu, o argentino Nicolas López é igualmente o exemplo de uma prática construída em acréscimos de experiências, na América do Sul natal (Chile, Venezuela, Colômbia) e noutros continentes (Austrália, América do Norte, Europa).

O Chef, Nicolas López
(Fonte: hotel)
Em jantar recente, de apresentação do conceito hoteleiro e da carta, foi-me possível comprovar a oferta e confirmar a qualidade desta cozinha de síntese. A espaços, aproximei-a do que é praticado há alguns anos na Taberna da Rua das Flores. A diferença reside, parece-me, na progressão dos olhares. O que, no Camões, é incorporação de fora para dentro, da memória do provado alheio na nossa memória, é aqui inverso: a incorporação do produto local na experiência de vida do cozinheiro. Lá, a cozinha portuguesa recebe; aqui, parte para novas paragens.

Cozinha de experimentação, própria do descobridor. Pratos que nos desafiam convenções, gostos estabelecidos.

Sardinhas com melão, pimento vermelho e agrião
As sardinhas curadas em 48 horas e marinadas. A espinha provocante, crocante.
Arriscado, mas quem quer viver sem correr riscos? 

Cavala com sopa de ostras e amora
Repararam nas amoras? Pois

Salada de melancia,ervas aromáticas e alho francês
Texturas naturais e trabalhadas, doce e salgado.
Carabineiros, kimshi, shiso e molho de alho branco
Ao fundo, o
Robalo, puré de aipo, radicchio, espuma de funcho e pele tostada e crocante
Sabores que conhecemos bem e aqueles que nos vêm de outras geografias

Tártaro de borrego com arroz crispy, molho holandês e cinza de alho francês
Guloso de mais pedir, texturas antagónicas, memórias do fumo e da grelha argentinas, da carne portuguesa. Estrela.

As três sobremesas (a partir da esquerda alta):
Flã de Doce de Leite com Natas;
Tarte de Mascarpone com Morangos e Cerefólio;
Mousse de Chocolate com Amêndoas, Kumquat e sal;
Especialmente na mousse, a continuação da experimentação de conjugação de texturas e sabores.

Variação contemporânea da fusão que a cidade praticou desde a sua fundação (recordo que Lisboa começou como entreposto fenício) e que, a partir de meados do século XV alastrou ao mundo, esta conjugação de ideias e experiências próprias e alheias parece-me ser a que mais irá marcar os próximos anos. A internacionalização da cidade a que assistimos, mais do que uma preferência eventual, é uma tendência avidamente procurada pelos poderes públicos, optando-se claramente pela sedução dos promitentes visitantes e moradores do que pela prossecução das políticas de apoio à melhoria da qualidade de vida dos existentes cidadãos. A este apelo corresponderão - como sucedeu com o Chef Nicolas López - muitos, interessados não só em viver como em contribuir para a evolução do espaço e das mentalidades. Se acrescentarmos a esta vontade de vir a limitada oferta de novos profissionais (sempre menos do que o aumento de procura que a velocidade de abertura de novos espaços implica), fácil se torna inferir que, cada vez mais, será este o caminho a evidenciar-se.

Que venha. Pelo provado, não estaremos nada mal. E, insisto e friso, não será nada que não tenhamos vivido desde sempre. Ou acham que a comida que hoje defendemos como tradicional lisboeta não foi desenvolvida maioritariamente pelos imigrantes galegos?

Esqina Cosmopolitan Lodge
Rua da Madalena, 195, Lisboa
Tlfs: 00 351 210 522 735 ; 00 351 961 256 323

Almoços - 12:00 a 15:00
Jantares - 19:00 a 24:00 * Cozinha encerra às 22:30h

Comentários

No último ano..