Ver estrelas não é ter estrelas

Roy Lichtenstein - "Sweet Dreams, Baby!”,1965
(Fonte: New York Times/
Roy Lichtenstein Foundation)

Na sua gala anual de massacre da boa disposição dos aficionados portugueses, o Guia Michelin da Península Ibérica apresentou as novidades para 2020. Realizada, como é habitual (o ano passado foi a excepção para confirmar a regra) em Espanha, apresentada em espanhol, a cerimónia que consagrava os restaurantes dos dois países contrariou as expectativas incentivadas pelas declarações prévias do seu responsável de comunicação. Portugal continuou sem a sugerida chuva de estrelas, ganhando novos restaurantes para a lista mas perdendo outros. Viu ser promovida uma das casas à categoria seguinte.

Diogo Rocha (Mesa de Lemos) a caminho do reconhecimento estrelático.
O prémio que mais me entusiasmou

Estava eu (cada vez mais) posto em desassossego com a cerimónia quando a catadupa de protestos, impropérios e comentários privados que me entrou telemóvel dentro me lembrou um texto lido há dias, escrito pela editora de lifestyle do Observador. Nele postulava a senhora que uma das principais diferenças entre bloggers (e influencers) gastronómicos e jornalistas da área era a incapacidade dos primeiros e a capacidade dos segundos para escrever textos isentos, competentes e sem medo de relatar a verdade. De um lado a ignorância e a cobardia perante a dependência das refeições oferecidas; do outro, os conhecimentos, a profundidade de análise e a independência perante a indústria (deixemos de lado as histórias muitas vezes lidas e nunca contestadas de artigos suprimidos por vontade dos anunciantes; deixemos de lado as confissões de alguns que só se deslocam aos restaurantes quando a convite, por falta de orçamento do jornal; deixemos de lado a quantidade de textos publicados em jornais que são cópia, ipsis verbis, dos comunicados de imprensa escritos pelas agências de comunicação que eu também recebo).

"Muito bem", pensei, "quero ver quantos textos jornalísticos escritos por esses faróis da probidade e do conhecimento vou encontrar nos próximos dias que denunciem este estado de coisas, que apontam o irrealismo, a ignorância, a parcialidade, a arrogância de quem assim se atreve a caracterizar a nosso estado de coisas restaurativo." Mais tarde, já arrefecido, admitia que a posição contrária também seria digna de ler: "quero ver quantos se atrevem a revelar que concordam com a análise dos inspectores, que defendem que os nossos restaurantes são maioritariamente pouco inspirados, provincianos, cópias baças do que se vê no Instagram....".

Roy Lichtenstein,Atomic landscape, 1966
(Fonte: Roy Lichtenstein Foundation)

Em vão. A maior parte dos textos publicados na imprensa (escrita ou online) vindos a lume apenas se autorizam a relatar os factos, polvilhados a espaços por um débil lamento nacionalista pela pequenez do pecúlio. Falta de argumentos ou de vontade para expor a sua opinião.

Opiniões li-as - e muitas - em alguns blogues de referência. Esclarecedoras, fundamentadas, ainda que não tão incisivas (e, de algum modo, esclarecedoras) quanto as que me chegaram de modo privado. Quase todas indignadas - a maioria quantitativas, algumas qualitativas (explicando, porque sim ou porque não este ou aquele deveria ou desmerecia a estrela) -, umas a deplorar a ignorância outras a arrogância.

O que me parece ser comum à maioria é o problema parental que revelam: o Guia ainda é o pai desejado de quem se espera conforto e reconhecimento. Porquê?

Continuamos com uma auto-estima tão baixa enquanto sociedade que desesperamos pelo reconhecimento alheio para ratificar o que fazemos? Pensei que os sucessos desportivos e culturais e o cosmopolitismo da última década nos tinham limpo as teias...

MR.BABES, Low Selfie Esteem, 2018
(Fonte: Amazon)

Porque não criar um guia de restaurantes nacional - oficial, competente, bem estruturado, se quisermos construído para premiar qualidade e originalidade mas também para indicar ortodoxias e classicismos urbanos ou regionais - com o carimbo e beneplácito estatal mas gestão e patrocínio privado efectuado por empresa de referência, afastada das capelinhas do meio?

Um guia de distribuição gratuita a cada turista, no momento de entrada no país, um guia farol feito com os nossos critérios e as nossas regras que soubesse bem o que é e para onde quer ir a gastronomia portuguesa.

Daria trabalho e discussão, teria falhas e defeitos mas PORRA, seriam as nossas falhas e os nossos defeitos, sempre a tempo de serem corrigidos!

Comentários

Duarte Lebre de Freitas disse…
Caro Pedro,
Boa reflexão.
Esta foi a que deixei no meu Facebook, que baliza os meus comentários ao teu post:

"Eu sei que abuso um bocado das metáforas futebolísticas, mas se no futebol se diz que são 11 contra 11 e no fim ganha a Alemanha, no (La) Guia Michelin Portugal e España, foram 19 contra 4 (1*), 5 contra 1 (2*) e 1 contra 0 (3*) – e no final ganhou sempre Espanha.

Se fiquei surpreendido? Não, e basta ler as previsões que fiz, obviamente influenciadas pelo “diz-que-disse” que já corria há umas semanas. Se fiquei triste? Em parte. Feitoria podia e devia ter ganho a 2.ª, São Gabriel podia ter ganho a 2.ª, Euskalduna podia ter ganho a 1.ª. E o Ocean podia ter ganho a 3.ª, embora me pareça defensável manter-se com duas (falo, lembro, dos que fui no período de avaliação do guia que saiu ontem).

Claro que quando vemos em direto o anúncio não podemos deixar de nos sentir pequenos face às estrelas que caem para nuestros hermanos, e é de facto irritante uma gala toda em castelhano (e inglês!) que só Rui Paula quebrou ao falar português. E obviamente as declarações sobre ser um ano excecional foram absurdas - mas não tem sido sempre assim? O que conta são as promessas de um diretor de PR que parece apostado em criar buzz mais do que em informar?

Passadas 24 horas… sim, há os que podiam ter ganho, sim um inspetor português para uma dúzia de espanhóis. Mas… quantos mais do que aqueles que cito deviam ter entrado no grupo dos estreláveis? 3, 4, 5?

Será isso suficiente para todo o rasgar de vestes que se vai lendo aqui e ali? Seria de facto bom para Portugal ter um guia só para si? Basta recuarmos 10 anos: no Guia 2010 tínhamos 12 restaurantes (agora mais do dobro, 27), 9 dos quais eram liderados por chefes estrangeiros (agora 7 ou 8, mas quase todos já cá estavam na altura).

As coisas estão a melhorar. Mais do que exigirmos reconhecimento ou um guia só para Portugal, devemos exigir aos nossos chefes e “restauranteurs” que continuem a investir, no produto e nos recursos humanos, e que não trabalhem para as estrelas mas sim para os clientes. O reconhecimento acabará por chegar."

Comentando:
Percebo o ponto de estarmos sujeitos a Espanha e, como refiro, também me enerva aqui e ali. Mas, confesso, o Guia Michelin está para a restauração de qualidade como a democracia está para o sistema político: são maus, mas ainda assim melhor que todos os outros!

Não acho que tivéssemos nada a ganhar com ter o nosso próprio Guia; sim, não nos sentiríamos pequenos, sim, talvez os inspetores fossem na sua maioria portugueses. Mas... como alguém escreveu há uns dias, já depois da Gala, seria como sair da UE gastronómica.

Espanha leva muitos anos de avanço a trabalhar esta área. Estão um nível acima; as minhas experiências gastronómicas em Espanha (e das pessoas cuja opinião considero) vão quase todas nesse sentido. Dado que não podemos vencê-los, julgo que temos muito mais a ganhar em tentar juntar-nos a eles (adotar práticas e projetos, mas manter - sempre! - o selo português da comida), do que em atirar a toalha e fazer um guia do Portugal dos Pequenitos. Queiramos ou não, Espanha cobre todas as nossas fronteiras, e economicamente não vivemos sem eles. Porque haveria de ser diferente nesta área?

Nós já temos alguns guias (o Boa Cama, Boa Mesa atribui garfos, está ligado ao ou a um dos mais prestigiados jornais portugueses) mas por alguma razão não têm impacto.

Claro que sentado, ora no sofá, ora nas cadeiras dos nossos michelins (menos do que gostaria) é fácil dizer, mas o caminho é melhorar os nossos restaurantes, mantê-los por anos e anos (veja-se o que sucedeu no Ceia ou no São Gabriel para dar dois exemplos recentes...), sempre a trabalhar os nossos ingredientes, aquilo que nos distingue. Mais ano menos ano o Guia nos dará a 3ª estrela e isso desbloqueará tudo. Temos 1 ou 2 anos para trabalhar no duro e chegar lá. O comboio ainda não passou...


Duarte Lebre de Freitas disse…
[quem muito fala pouco acerta...]

Só uma nota adicional: mesmo que surjam World50Best, Restaurant Awards e outros, o Guia Michelin é, genericamente, a referência. Muitos dos estrangeiros que cá aterram e vêm com propósitos de cozinha de autor, é a ele que recorrem. Como, infelizmente?, dependemos dos estrangeiros para singrar, não vejo melhor forma de termos projeção (» mais clientes » mais faturação » mais investimento...) em 2020 do que através do famoso Guia.
Pedro Cruz Gomes disse…
Duarte,

Os teus argumentos têm toda a lógica mas eu não defendo um Michelin para Portugal. O que eu sugiro é um guia "institucional" que, para quem nos visita, seja uma espécie de oficialização do que é ortodoxamente regional ou reconhecidamente valorizado pelos nacionais. Eu trabalho com estrangeiros e sei bem que a maioria, mesmo que se sinta atraída pelo reconhecimento Michelin, está ansiosa por descobrir e provar aquilo que os locais preferem.

Quanto ao Mich, o que defendo é que o coloquemos na mesma função onde ele, de acordo com o que vem repetindo ano após ano, nos coloca: como um acessório, um acrescento, se positivo, ao que nós já sabíamos e defendemos (daí o guia institucional). E para dar ênfase ao facto que temos mais em consideração a nossa apreciação, deveria esta institucionalização ser oferecida, logo à entrada, a quem nos visita.

Não gosto nada de andar a correr atrás dos outros à espera de ser reconhecido, pelo que deprecio esta expectativa canina de esperar por uma festa, um osso, uma estrela. Que eles andem por aí a distribuí-las parcimoniosamente e com alguma incoerência. Deveríamos estar noutra, a olhar para a nossa opinião e a dá-la a conhecer ao mundo.

No último ano..