Quarentena #2 - Repugnância



Meu amor,

Vi finalmente um pouco de nervo naquela frieza calculista a que habituou o país, naquele sorriso de póquer capaz de suportar humilhantes derrotas sem se desmanchar, na compostura cínica que deixa para o silêncio dos gabinetes as explosões do ser. Um descontrolo a destronar o calculismo das palavras, impossíveis no urbano mundo da diplomacia e da alta política.

As horas roubadas ao sono, o contínuo pedido de respostas urgentes, a ausência de matérias, materiais, modos, começam a criar brechas na carapaça política. O peso acumulado das ofensas anteriores pesa.

As atitudes "repugnantes" a que o primeiro-ministro alude mereceriam bem a recuperação da famosa frase de um seu antecessor (Pinheiro de Azevedo) e - esquecendo que frases fortes apenas o são se evitada a sua repetição frequente - não lhe ficaria mal ter convidado aqueles quase perfeitos representantes de uma Reforma que, desde o século XVI, nós, sulistas, católicos e descontraídos combatemos, a irem bardamerda.

Acredito que naquelas cabeças que portam em simultâneo o vício do trabalho das formigas e a rigidez emocional da meteorologia que lhes compõe o cinzento dos céus passe a satisfação da vingança, de ver alguma justiça na distribuição do vírus que mais ataca o país da comida e da bebida do que os seus perfeitos polders, as suas nevadas estepes, as suas arianizadas urbes. Talvez anseiem pelo empobrecimento total dessas populações mediterrânicas, de modo a poder tomar conta dos espaços, das praias, do céu azul, tão facilmente como o fizeram na Indonésia, nos Sudetas, no Sudoeste africano.

Talvez isso ou talvez esteja a ser injusto. Talvez a imundície a que se referia Costa seja apenas reflexo de uma pobreza de pensar contabilístico, precaução de pequeno-burguês premiado com inesperada fortuna e disposto a todas as ofensas para a preservar. Não foi esta igualmente a política nacional dos últimos cinco anos - poupar, poupar, poupar, trocando saúde e investimento produtivo pelo controlo orçamental? Onde, Sampaio, estás, repetindo o protesto de outros tempos de que há vida para além do deficit?

Seremos assim tão diferentes? Não nos alteramos o nosso posicionamento e as nossas atitudes consoante o sofrimento é longínquo ou próximos, alheio ou próprio? Não somos todos internamente cínicos, intolerantes perante a diferença, indiferentes em relação à tolerância?

Esperemos que esta repugnância perante o egoísmo, a ausência de empatia, a erosão dos valores de solidariedade que derivam da crença de igualdade e fraternidade não se evada ela própria quando estes tempos passarem e a fortuna vire. Continuaremos a protestar a nossa fé na moral que defendemos? Reataremos as antigas relações, interrompidas, afectadas pela pressão deste confinamento, pela desconfiança que crescerá em relação ao outro que nos poderá infectar, pelo ressentimento com empregadores, senhorios, banqueiros, governantes que não quiseram - ou não puderam - protelar, adiar, apoiar?

Tenho algumas dúvidas. Ainda estamos no princípio e, com o princípio da distância mínima, nos começamos a afastar, isolar. Já reparaste que as pessoas por estes dias quando próximas preferem não se encarar, optam por desviar os olhos? Somos grandes nas redes sociais, oferecemos serviços, pedimos solidariedade, partilhamos boas intenções mas, na rua, nas filas, nos corredores dos supermercados, transformamo-nos em ilhas, acrescentamos à proibição de contacto físico a ausência de comunicação directa.

Com este trauma, regressaremos a um tempo de partilha de afectos e de sentimentos ou ter-se-à agravado definitivamente esta tendência egocentrista, este viver em bolha reduzido à satisfação das nossas apetências?

Amo-te.

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No último ano..