Quarentena #3 - Caos
Meu amor,
Se o caos é o oposto da ordem, é no caos que vivemos hoje e enquanto durar esta quarentena. Será no caos que nos manteremos enquanto permanecer pandémico este medo.
Viveremos no caos, independente da nossa superação ao vírus - à sua intrusão, à sua influência, à sua sombra. A ordem que habitávamos, desejávamos, intensamente procurámos defender estilhaçou-se e jaz em pedaços nas nossas casas ocupadas 24/24, nas ruas mais silenciosas e mais cheias de lixo, nas filas que hoje encheram as avenidas de acesso às praias e na indignação sentida pelos que não as integraram. (Lembras-te quando fomos nós a buscar o Sol, numa praia despida de gente e preocupações?)
Desordem no rescaldo desta luta sem luta, sem armas eficazes, sem inimigo palpável, atingível. Desordem nas contas para pagar, não esquecidas apenas adiadas, nos negócios falidos, nos empregos desaparecidos, nas caras desaparecidas sem uma última despedida, um último aceno, uma última homenagem.
Desordem também, porventura, na convicção dos atingidos de que o Estado poderia ser mais, os governantes serem melhores. Convicção transformada em desilusão, alheamento para alguns oposição para outros.
Lembras-te da História? De como o caos do final da I Guerra deu origem à loucura dos anos vinte? De como essa desordem levou ao caos económico e desse se passou à voluntária aceitação dos ismos que culminaram em mais um confronto mundial?
Pergunto-te, pergunto-me: o que nos espera?
Virar-nos-emos, como alguns já o fazem aqui (e muitos lá) para os profetas morais, ecológicos, políticos? Será esse o nosso destino - nadar furiosamente até soçobrarmos contra essa corrente violenta que se estranhou mas acabou por se entranhar como reacção ao medo?
Do outro lado vejo o Poder a aproveitar esse medo (mais um, depois do securitário) para melhor nos controlar. É aterrador receber um sms de um anónimo com um crachat a exigir uma selfie comprovativa, é aterrador ter um algoritmo a decidir a validade da nossa cidadania, é aterrador sentir que um Big Brother aterrou suavemente nas nossas vidas, com a nossa aceitação.
Como Ulisses, passamos entre Cila e Caríbdis e o percurso é tão estreito que se torna praticamente impossível sairmos incólumes. Como no Brasil, sinto que estamos perto de chegarmos à derradeira escolha: ficar ou correr, ser apanhado ou ser comido pelo bicho.
Apesar deste futuro possível, continuaremos a ter esperança, continuaremos a crer?
Onde iremos acostar a nossa fé? Enterrá-la-emos como muitos ou procuraremos nelas respostas para melhor sermos?
Deus morreu? E nós?
Amo-te, sempre
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Bisous