Pós-quarentena #1 - Pimenta no traseiro dos outros...


É bem provável que esta novirrealidade (nova realidade ou nova irrealidade? escolham vocês) mais tarde ou mais cedo acabe por tornar imprestáveis alguns dos provérbios e adágios que nos balizavam a vida, recordando que, apesar do progresso, algo de imutável continuava presente, possibilitando ver no passado respostas para os problemas do presente.

Tudo sempre mudou para que tudo continuasse na mesma - e, acredito, haverá coisas que nem esta abrupta queda nos nossos planos de vida conseguirá alterar: o homo homini lupus que o meu professor de Filosofia gostava de citar (o homem é um lobo para o homem), a chico-esperteza, a capacidade dos poderosos continuarem a flutuar acima da superfície dos comuns, mantendo vantagens, privilégios, mordomias, a força dos impostos

(Já vos cansei com esta introdução? Vou falar da restauração daqui a algumas linhas...)

"Pimenta no cu dos outros é refresco para mim" - ouvi este dito muitas vezes, emitido por arrogantes e indiferentes, galifões ou irritados, crentes ou descrentes. Forma de exorcizar frustrações ou garantir falsas superioridades, o que é facto é que demonstrava esse lado crescente da nossa cultura social - a indiferença perante o sofrimento do próximo, o "salve-se quem puder" liberal que corrompeu as estruturas de solidariedade herdadas da tradição cristã.

Sucintamente, o "temos pena" irónico que sem o vernáculo, nos habituámos a utilizar nas mais diversas situações. "Não te corre a vida como queres? Temos pena.". "Não ganhas o suficiente para pagares todas as contas? Temos pena.". "O restaurante de fulano faliu? Temos pena."

Tínhamos pena mas o mundo girava muito depressa e nós estávamos ocupados a não perder a oportunidade, éramos também portugueses no nosso melhor, invejosos do sucesso alheio e mortinhos por ver acontecer aos outros mais do pior que nos acontecia. A pimenta e o refresco...

Só que.

Vivíamos, muitas dezenas de milhar, da gastronomia no sentido mais lato. Do hábito de receber e da apetência para descobrir e dessa interacção conseguir dinheiro suficiente para, se não cumprir os sonhos pelo menos não morrer a olhar para eles. Para isso, mesmo que o não reconhecêssemos, estávamos dependentes de tantos e de tanta coisa, de tantos factores que não conseguíamos controlar mas que se equilibravam, pertenciam a uma lógica coesa e, aparentemente, inabalável. O mundo corria e nós atrás dele seguíamos.

Agora o mundo parou e, mesmo que recomece a andar, dificilmente voltará até nós da maneira que vinha, não tão depressa, não quando precisamos. A pimenta no cu dos outros dói-nos também a nós.

Muito do que construímos não funciona só com  mercado nacional - não temos rendimentos, não temos população, não temos massa crítica para sustentar a maioria dos alojamentos e restaurantes que criámos. (Onde está agora a arrogância dos que chamavam idiota a quem alertava para a elevada dependência do turismo que tinha a economia nacional, dos que condicionavam à política a crítica a uma ausência de diversificação nas acções do Governo?)

Não sendo provável um retorno rápido das massas de visitantes (também elas confinadas socialmente no presente e depois confrontadas com o súbito empobrecimento e alimentadas com o medo do contágio) forçoso é concluir que o número de falências do sector será elevado, devido ao excesso de oferta face à procura e à inevitável baixa de preços devido à concorrência que esmagará margens e levará à inviabilidade do negócio.

Não acredito em grandes benesses fiscais considerando que o Governo manterá os paradigmas que até agora definiu, ocupado em pagar salários e fugindo a despedimentos na função pública; da União Europeia, como se tem ouvido pouco haverá a esperar, menos ainda de credores e agências de rating, pelo que me parece que estaremos sozinhos no meio do oceano, com pouco mais que um bote de borracha, um par de remos - e o tradicional espírito lusitano, muito mau para programar mas óptimo para o desenrasca.

Como nos vamos desenrascar, então? Ainda não sei, mas sei que, pelo menos eu, tenho de encontrar uma resposta. E ou a encontro rapidamente ou acabarei os meus dias a guardar a casa e o jejum até o fisco e a segurança social me vierem expulsar, levando o pouco que resta.

E vocês? Estratégias, ideias, sugestões?

Comentários

No último ano..