Pós-quarentena #2 - Os restaurantes não vivem de foodies




Desenganemo-nos, nós que respiramos comida, vivemos comida, trocamos cromos de comida: somos muitos, debitamos entusiasmadamente muito material publicitário, servimos até de correia de transmissão de agências de comunicação e chefes mediáticos mas não somos suficientes para pagar a totalidade das facturas que a existência dos restaurantes gera.

O que é um gourmet? Antigamente (muito antigamente: no século passado, principalmente no regime passado) era alguém, como ouvi Bento dos Santos acertadamente definir,  "com dinheiro suficiente para beber champanhe e comer caviar". Neste século, principalmente nesta década, passou a ser alguém que, por via das redes sociais, procurou publicitar o seu estilo de vida  gastronómico, primeiro através de textos descritivos depois críticos, mais tarde ilustrados, depois apenas por fotogramas, mais fáceis de emitir, também de imitar e muito mais fáceis de serem seguidos.

Um gourmet foi um belíssimo promotor: barato, atraente, contemporâneo, sinalizou os novos tempos e entusiasmou os novos ares nacionais, servindo de estímulo ao interesse dos desinteressados e ajudando a trazer para o meio gentes que anteriormente desdenhavam cozinheiros e cozinhas e da modernidade apenas conheciam as gastas piadas sobre pratos grandes e porções reduzidas. Sem se aperceber do esquema de Ponzi que ajudava a manter, qual Dona Branca benigna e saborosa, o gourmet continuaria o seu papel central nesta pirâmide crescente não fora o malfadado vírus precipitar o que, tarde ou cedo, aconteceria: a insustentabilidade de um sistema que dependia obrigatoriamente do contínuo crescimento do número de clientes para não falir.

Respondam-me com sinceridade: em algum dia do vosso frequente visitar das casas de restauração vos aconteceu pausar um pouco e, entre garfadas, reflectir sobre a conjugação do número de inaugurações mensais, dos preços cada vez mais inflacionados, da sustentabillidade da cidade e do país, das ruas das praças dos passeios dos prédios cheios de gente em alegre cacofonia babélica ? E não acharam que, inevitavelmente, a casa viria abaixo, ainda que, sendo portugueses e bons católicos acreditassem que Deus, a Nossa Senhora de Fátima, o Estado social ou uma monumental vaca iriam atirar isso para depois da vossa vida?

A casa começou há um mês e meio a vir abaixo. Veio à bruta, mas ainda suficientemente leve para nos manter a esperança: vamos poder sair e vamos poder voltar a frequentar - nós, gourmets, os apoiantes da indústria, dos compatriotas e dos produtos e produtores locais - os locais que amamos. Nós, gourmets, claro, exceptuando apenas os que não mantiveram o emprego ou os clientes ou o subsídio do Estado. Vibrantes, vibrando novamente com os sabores, as companhias, o prazer de estar, de sentir, de viver.

O problema é que somos poucos. Muito menos do que o número para o qual a indústria se preparou, esperou, projectou, porque, obviamente, o tempo mudou. Mesmo que temporariamente, o que veio para ficar foi, para além do medo de sair de casa para outros lugares, a extraordinária quebra de fundos que possibilitava a vinda de tanto turista, a visita de tanto curioso, o consumo de tantas bocas.

Como se mantém um negócio, um sector da economia, sem massa crítica para o sustentar?

Existem estratégias que podem aperfeiçoar os resultados - racionalizar despesas (e tão mal se faziam contas!), alterar aproveitamentos, cortar desperdícios - mas estas não passarão de paliativos. Não será possível baixar os já genericamente baixos salários sob pena de se perderem funcionários, não por má vontade mas por incapacidade de pagar rendas, transportes, sobrevivências. Não será possível convencer mais estagiários a trabalharem de graça. Não será possível baixar preços em restaurantes que já têm margens reduzidas.

Mas, fundamentalmente, não será possível pedir aos nacionais para jantarem mais do que uma vez por dia, de modo a multiplicar o número de clientes.

Portanto, senhoras e senhores, nós gourmets (os que mantiveram o salário ou os clientes ou o subsídio) que não somos suficientes para matar a fome dos restaurantes, saberemos ao menos ajudar a resolver a quadratura do circulo vicioso em que o vírus e o entusiasmo empresarial nacional nos meteu?

Mãos à obra que eu estou aqui para ajudar, já que também sou parte interessada (e não só pela gourmandise)!

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