Virgílio, À Portuguesa










Virgílio Gomes, um dos mais bem informados gastrónomos portugueses, regressa ao prelo com uma viagem pelos mais importantes livros de receitas europeus editados entre os séculos XVI e XIX. São  publicações de trezentos anos vistas à lupa pelo historiador da alimentação sob o mote, "o que significou cozinha à portuguesa?".

Se no olhar do outro, nos seus actos, reside parte do que somos, é ao conhecer o outro que também (parcialmente) nos conhecemos. Esquizoides que somos enquanto povo, prontos à maior desconfiança quanto ás nossas capacidades para a intervalar momentaneamente com delírios de grandeza, não nos permitiu o delírio a manutenção aturada desta descoberta: o outro, muito melhor ou muito pior (conforme a lua) serviu-nos enquanto providenciador de belezas, de trabalho escravo, de salvador ou promotor de desgraças - de instigador, ensinador ou exemplo, rara e excepcionalmente e - até à difusão da Internet - muito tardiamente. Se fixarmos a atenção nos anos de chumbo do "orgulhosamente sós", o outro, oficialmente, era tentação do demo que imperava manter do outro lado da fronteira, não fosse a tentação desorientar povo tão ordeiro e cumpridor.

Voltando à gastronomia. Foi já há alguns anos que ouvi o Virgílio iniciar-nos na sua perplexidade perante a titularidade "à portuguesa" de algumas receitas incluídas. Se bem me recordo, "à portuguesa" seriam os pratos que utilizavam tomate o que, olhando para a história e para a actualidade, era no mínimo incorrecto e no máximo onírico. De curiosidade passou a perplexidade a estudo e, ao longo do tempo, fui sendo espectador (discreto) desse labor que muitos escritos percorreu.

Há poucos meses chegou a boa nova: um novo livro prestes a sair, com a crónica e os resultados do estudo. E, neste Agosto fresco, pesado dos restos da pandemia, ei-lo nas livrarias.

Começa por ser uma colectânea receitual do olhar que europeus nos lançaram (ou, se quiserem, um espelho da idealização europeia sobra a cozinha dos portugueses). Com receitas que nos perturbam pela dúvida: terá o presente apagado dos costumes o que, na altura, pelos nossos seria de alguma maneira praticado? Eis uma (inesperada) lição de humildade: o que sabemos nós da nossa história culinária, da nossa gastronomia?

(Coloco-me no papel de um meu descendente que, daqui a duzentos anos olhe, perplexo, para a recolha de gastronomia alentejana publicada há alguns anos, patrocinada por autarquias e entidades públicas e se pergunte se a receita de esparguete à bolonhesa nela contida afinal é alentejana ou se uma farta colónia italiana tenha deixado uma influência perene por entre sobreiros e recos)

Depois, para os que, como eu, procuram descobrir na História dos outros, origens (influências) da nossa, é uma fantástica fonte de informação acerca das circunstâncias e características dos livro pesquisados.

Finalmente, pelo menos para mim, é um desencadeador de (mais) perguntas (e a que mais poderá aspirar um autor do que ser inspirador de mais?), principalmente respeitantes aos livros espanhóis editados enquanto Portugal viva como província dos reis Filipe - considerando a situação política da nação e, no que toca a Filipe II (I de Portugal) com Lisboa, onde residiu e manteve corte, não será de estudar / considerar / analisar / propor /discutir a hipótese de serem esses os primeiros livros a tratar da cozinha nacional (ainda que disfarçada pela ausência - na maior parte dos casos - da referência à origem, do uso da língua espanhola? Mais: face à hipótese (aventada por alguns eruditos)  de Francisco Montiño (Moutinho?) ter origem portuguesa ou, pelo menos ter conhecido a culinária portuguesa nas estadias em Lisboa com a corte (era o cozinheiro real dos vários Filipes), não será de considerar que parte do receituário terá origem lusitana, logo o livro será antepassado português do livro de Domingos Rodrigues e, como tal, o primeiro livro de cozinha editado em Portugal? Acrescente-se que tanto um como o outro faziam um culinária restrita à corte pelo que o que é aceite para Rodrigues (português ainda que para poucos) servirá igualmente para Moutinho.

Divago. Voltemos ao autor: parabéns! Venham mais, venha mais incitação ao estudo, à descoberta!

E, já agora, aceite uma provocação da minha parte, extensível a todos os que me leem: alguém se presta a arriscar uma síntese sobre o que é a cozinha À PORTUGUESA para os portugueses?

PS - A propósito do tema - e porque, aparentemente, a "estória" teve origem num livro de Escoffier (posterior a 1900, logo fora do âmbito da presente obra) - deixo aqui, como memória futura e proposta de mais uma discussão, a minha contestação à opinião muitas vezes repetida de que a receita "Perdiz à Convento de Alcântara" tem origem portuguesa. Por mais que seja repetida, uma inverdade não ascende à categoria de facto.

Comentários

Anónimo disse…
Cebola, alho, louro, salsa, tomate, azeite, sal grosso do mar. Couve galega, feijão. BATATA, arroz carolino. Carne, pouca, de porco; chouriças fumadas. Peixe de mar, miúdo, carapau, sardinha, cavala. Estrugidos, estufados, alguns "cozidos". Broa e trigamilha. Leite creme, pão de ló, ovos moles e vinho fino. Com isto, em qualquer parte, estou na minha cozinha portuguesa do Norte Atlântico.

No último ano..