O fim das conservadoras conservas


E se um conhecido lhe oferecer uma sobremesa com sardinhas, como reage - levanta o sobrolho, pensa na rainha de Inglaterra (stiff upper lip e o mais) e dedica-se a encontrar na proposta motivos de satisfação? Esta foi a subentendida pergunta colocada no final de um muito interessante almoço para divulgação de algumas das novas propostas conserveiras, realizado na Taberna Albricoque e promovido pela portuguesa ANICP (Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe).

Como na antepassada nação, fundada (entre outras fundações...) numa abençoada trilogia fadofátimafutebol também as nossas antepassadas conservas se fundaram, durante décadas na não menos abençoada trilogia ATUM / SARDINHA / CARAPAU.

Crescemos - milhões - e ainda vivemos - espero que também, pelo menos, centenas de milhar -, sustentados no gosto e no prazer de comer o bom conteúdo de uma lata de conserva. Sardinhas com azeite ou tomate, carapauzinhos oleados, atum do Algarve ou dos Açores... tudo casado com batatas cozidas ou matrimoniado em estivais saladas com alface, tomate, alegraram jantares, piqueniques de burguesas, dispensaram mães e pais cansados de elaborar morosos e cansativos jantares, contribuíram para a bem portuguesa e, espero, ainda não abandonada aos turísticos ditames da (blherc!) tapa, petisqueira nacional. 

(Intervalo necessário: que esta rosada e apetitosa tradição nunca vos faça esquecer que, antes do presente sucesso turístico e comercial, as conservas portuguesas mataram a fome directa e indirectamente  a milhões de portugueses - entre eles, pelo menos, alguns dos nossos antepassados. Respeito.)

A sociedade portuguesa evoluiu, rendeu-se a modernidades e modernices (o peixe congelado, o peixe cru), tornou-se menos pobre, e de pobre passaram as conservas a fazer figura, parentes embaraçadas de uma outra época. O ocaso de dezenas de fábricas que populavam as costas nortenha e algarvia, a diminuição da frota pesqueira costurada nas negociações de entrada da CEE, o desaparecimento do atum do mar algarvio, pareciam indicar uma saída de cena à boa maneira portuguesa, envergonhada, silenciosa, lentamente sofrida. Apesar dos entusiasmos referidos acima, as conservas portuguesas viveram aquela apagada e vil tristeza que antecede o desaparecimento final até que, de espécie em vias de extinção passaram, por força do interesse dos multiplicados visitantes do presente e o aumento do preço de venda que a procura motivou, a espécie em vias de promoção: da cesta básica directamente para a prateleira mor dos produtos-estrela da gastronomia nacional.

Por muito que me custe a astronomia dos preços praticados na Baixa de Lisboa, esse aumento de facturação está a multiplicar a oferta e a relançar a indústria e a variedade: as conservas portuguesas estão cada vez mais boas e recomendam-se.

Registem-se três factores: qualidade (sempre existiu), embalagem (vem de trás) e diversidade. 

Esta diversidade que cada vez mais se multiplica - de espécies conservadas, de "meios ambientes" de preservação (gorduras, molhos), acompanhamentos e tipos de preparação - possibilita uma pujança, não vista há muito.

Foi precisamente para demonstrar (parte) dessa diversidade que a ANICP organizou esta semana um almoço na capital. Anfitreados por um dos mais discretos grandes cozinheiros do país - Bertílio Gomes -  na sua Taberna Albricoque, os felizes convidados puderam descobrir a qualidade de alguns dos mais recentes produtos disponibilizados pela indústria conserveira e o alto que lhes é possível voar quando inteligente e gostosamente preparados. 

Com reforçado incentivo a que descubram novas experiências através do manancial de oferta da indústria nacional, aqui fica a reportagem fotográfica. Comprem nacional, exigem nacional, sejam exigentes com os nacionais!


Couvert: Paté de ovas de Pescada Picante "Briosa"



Entrada: Taco de Polvo "José Gourmet" com salicórnia

Entrada: Maki de Filete "Consul" e Ovas de Cavala "José Gourmet"

Entrada: Escabeche de enguias "Cantara" em tarte de batata

Entrada: Chicharro Fumado dos Açores "Casa do Portinho"
em ceviche aipo, maçã verde e batata doce

Sequência de entradas a definir o passo, bem harmonizado com um monocasta Bical, Marquês de Marialva. O patê de ovas de pescada a fugir ao habitual (que as "tabernas" do presente deveriam adoptar!), o chicharro fumado, o polvo e as enguias a exigirem estadia em permanência na minha despensa.

Barriga "Jupiter" e Sangacho de Atum "Minerva" com ratatouille em molho holandês

Bicuda Fumada dos Açores "Casa do Portinho" com Mexilhões "Ramirez" em caldeirada e xerém

A bicuda fumada é outro caso sério e urgente de "nacionalização" de mais um segredo açoriano. Busquem-na! Consumam-na!

Finalmente, a sobremesa:

Sobremesa: Mousse de chocolate 70% cacau,
Sardinhas em Azeite Virgem Extra "Portugal Norte" e flor de sal

Foi um risco (assumido pelo chef Bertílio)? Foi. Originou unanimidade de opiniões? Não... Mas o que seria do mundo sem diversidade? O que será do nosso mundo se o pensamento (e o gosto) único vingar? Venha a estranheza, a experimentação, o desconforto perante o desconhecido! Ousemos provar!

E que venham mais conservas.

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