Cinco euros de Natal

A expressão, foi o senhor meu pai quem a começou a usar, apaixonado por tudo quanto era inglês, coisa estranha no seu tempo, apesar das ligações históricas, num país que se devotava integralmente a França. "Carol do Natal", chamava-me ele, aproveitando a coincidência do nome que minha madrinha escolheu com a data do meu nascimento para evocar Dickens de quem gostava especialmente, sendo como era um eterno romântico com uma preocupação especial com a sorte dos desvalidos.

Crismaram-me Carolina mas não me lembro de ouvir alguém chamar-me assim. Em casa de meus pais era Carol e para toda a Lisboa - ainda hoje, tantos anos passados pela minha partida... - sou Madame B., o apelido da família de minha mãe que os afrancesados lisboetas confundiram por gaulês e consideraram mais chic utilizar.
(Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal)
Herdei esta casa de meu marido, com quem me casei já tarde, um retirado cantor de opereta de sucesso passado, dedicado aos negócio dos livros antigos, paixão tardia com que tentou colmatar as falhas que uma gestão pouco cuidada das suas economias tinha criado. Partiu após poucos anos de vida em comum e deixou-me numa situação difícil, só salva pelo bem sucedido conselho de uma amiga que me lembrou o gosto da cidade pelas roupas caras e o pouco dinheiro que tinha para o manter. Passei assim a alugar fatos de cerimónia para festas e ocasiões especiais. Valeu-me primeiro a intemporalidade do guarda-roupa teatral que meu marido tinha guardado e mais umas quantas peças que herdara. Com o tempo, o jeito de umas quantas costureiras e muitos magazines chegados no primeiro correio de Paris, tornei-me a referência a que todos recorriam - os mais modestos e os aparentemente ricos...

Tive uma boa vida - há muito que a deixei. Sobreviveu-me este prédio e a tabuleta com o meu nome que ainda perdura encimando um primeiro andar que há muito deixou de ter clientes. Mas o prédio, esse, continua vivo, especialmente a minha vizinha de cima e especialmente nas noites de jantares festivos. Não sei porquê, hoje que é dia de um desses jantares, deambulo por entre as suas salas e a cozinha, no meio de tanta gente animada. Ninguém parece reparar em mim, o que é estranho.

Alexia, a dona da casa, entra de semblante carregado. Reclama com a qualidade do puré, com a cozedura do entrecosto. Pensará nos gostos tradicionais dos Natais passados? Pareço recordar-me de lhe ter ouvido em tempos histórias da sua infância na Beira.


O cozinheiro não parece perturbar-se, encolhe os ombros e pergunta por um abre-garrafas, há meia-hora, diz, que tento tirar a carica desta garrafa de leite de coco. Não me parece que existam cocos na Beira - será por isso que Alexia não lhe responde?

Grande alarido - eis que um casal chega, ele de suiças graves (ah como meu pai chegou a usar que saudade!) e ela que me parece espanhola pelo sotaque e a animação. Natal animado o deste ano, tanta gente, de tanto lado do mundo, um Natal de alegrias, como deveria ser sempre, de reencontros.

Venho até à sala. Começa a estar cheia e farta a mesa.






À sua volta fluem as conversas, os reencontros, as apresentações. Alguém pergunta porque está o piano fechado, sugere música, canções. Mais música? Oh meus pobres ouvidos, tão atacados pelos ecléticos gostos de Alexis nestas madrugadas de convívio... Fujo, volto à cozinha, cheia de um enleante aroma de carne bem assada. Hoje os pratos parecem mais atrasados. Finalmente decidiu-se a conversão da abóbora em creme. Oh, o que é aquilo? Enchidos, montanhas deles, alheiras, paios, paiolas, chouriços, morcelas, terá comprado Alexia todo o expositor?

Inspiro, sem repararem, o vapor que um tacho exala - subtil combinação para o que me parecia ser um refogado, leite de coco e azeite de dendem, dizem-me as latas usadas e abandonadas a um canto do balcão. Que feijoada é esta, interroga quem chega. Uma expressão luso-brasileira, responde quem está.



Corta-se presunto, corta-se chouriço. Recheiam-se cogumelos com alheira.




Dois pares de mãos afanam-se a transmutar pernas de peru em pedaços de espetadas.


O cozinheiro larga tudo e parte em corrida atrás de uma criança brincalhona. Depois volta e resmunga com o risotto, nunca fiz uma coisa tão seca. Cheira bem o risotto, parece-me ter visto ser-lhe acrescentada uma farinheira no início.



Eis que os últimos pratos chegam à sala (acontecem-me estas coisas, o tempo tem oclusões, não me é contínuo).





Alargam-se as conversas, os risos. Eis-me instalada à cabeceira, olhando tudo e todos. Uns olhos infantis que riem quando provam, uma farripa de presunto. Duas estranhas que encontram interesses profissionais comuns. É isto o prazer presente, o prazer de partilhar.



Umas pequeninas mãos percorrem as teclas do piano em ainda inábeis descobertas. Todos sorriem, apesar da provação. Ali reside o espírito dos Natais futuros... Alguém decide uma abordagem mais profissional e acompanha a jovem diva em duas canções de Purcell. É a vez da criança se queixar dos ouvidos, mal habituados aos extremos de soprano.


Eu abstraí-me um pouco, a mirar gulosa Eduardinhos e macarons. Se ao menos tivesse saúde para os comer...

  

Comentários

Pedro Cruz Gomes disse…
Obrigado, Pinus. E um bom ano também, com muitas descobertas vinícolas e bons textos a acompanhar.
In vino veritas...
Anónimo disse…
Cara Madame B
Se o risotto estava seco não dei por nada, pois que o comi às pazadas de tão gostoso que estava.
Quanto à criança, é a mai linda de todo o universo e arredores. Ainda por cima gosta de presunto.

No último ano..