Carne bovina - cortes (III)

(continuando)



Classificações de qualidade

Verifica-se em inúmeros países uma crescente preocupação em classificar a carne de acordo com aspectos qualitativos que se traduzirão, por um lado em informação de confecção e, por outro, no tipo de experiência sensorial decorrente dessa confecção.

Em Espanha, por exemplo, as peças são agrupadas em função da sua composição qualitativa e qualitativa, tendo-se em conta os seguintes factores:

- Quantidade de tecido muscular presente;
- Diâmetro das microfibrilas;
- Outros componentes (elastina, colagénio);
- Presença de gordura interfibrilar;
- Presença de gordura intermuscular;
- Espessura da massa muscular;
- Forma da peça;
- Grau de humidade.

Tais factores determinam a classificação de cada peça numa das seguintes categorias: Extra (ou Especial), Primeira A, Primeira B, Segunda, Terceira. (J.M. Vivo)

 Espanha: Categorias, peças e composição
Tanto os Estados Unidos como a Austrália possuem um sistema – o USDA Grading System no caso dos primeiros, o Meat Standards Australia (MSA) no dos segundos – que permite a classificação das peças em função da sua esperada qualidade degustativa. São sistemas claramente orientados para o consumidor e instituídos numa óptica de valorização do produto em mercados de grande dimensão e com vista à sua valorização tanto interna como, no caso australiano, para a exportação. Curiosamente, o que veio a ser um dado fundamental para o consumidor começou como uma resposta às necessidades dos produtores de fundamentação para o preço exigível para as suas carcaças.

Actualmente, a classificação americana, baseada na suposta interacção qualidade degustativa – gordura interfibrilar (marbling) das peças, contém os seguintes níveis:

  • US Prime – De maior qualidade e gordura intramuscular.
  • US Choice – Alta qualidade, disponível principalmente para restauração
  • US Select – Carne mais magra, qualidade aceitável mas menos suculenta e tenra
  • US Standard – Menor qualidade mas económica, sem marmoreado
  • US Commercial – Baixa qualidade, sem maciez, obtida de animais mais velhos
  • US Utility
  • US Cutter
  • US Canner
(Fonte: USDA blog)
a que se adiciona uma classificação de rendimento da peça (a qual é útil apenas em termos de venda aos talhantes/retalhistas). O reconhecimento deste sistema por parte dos consumidores americanos é praticamente absoluto, uma vez que ele é liberalmente utilizado pelos vendedores no anúncio dos seus produtos.

Ainda que contestado pela evidência dada por centenas de estudos que afirmam a sua relativa ineficácia (os quais questionam a sua natureza baseada em previsões teóricas mais do que em análises reológicas), é consensual que este sistema foi o principal sustentáculo da qualidade da carne americana. (Consulting, 2008)

No caso australiano, a classificação MSA está em vigor desde 1999 e procurou evitar as incertezas da previsão baseada em critérios de estrutura da carcaça e teor de gordura. Assim visa a implementação de um conjunto de boas práticas pré e pós abate com o objectivo de elevar a qualidade da produção em todas as suas fases. Notavelmente, estas medidas foram avaliadas a partir do cruzamento dos resultados de milhares de sessões de avaliação sensorial realizada por painéis de consumidores.

Essencialmente é um sistema de classificação de cortes de carne de acordo com o uso para o qual são melhor destinadas e a esperada qualidade de degustação. Não mede a qualidade desta, antes prevê-a a partir da origem e tratamento dos animais, carcaças e cortes, atribuindo-lhes um valor baseado no tipo de tratamentos aplicados. Mais do que a descrição de uma peça, o sistema incide sobre garantias de segurança e condições de abate.  (Consulting, 2008)

Na União Europeia, acentua-se a ideia de que mais do que a qualidade da carcaça (ou seja, do animal – da sua raça, alimentação e o sexo (macho/fêmea) – e das condições edafoclimáticas do ambiente onde foi criado as maiores influências na qualidade de degustação das diferentes peças ocorrem imediatamente antes e depois do abate e no processo de maturação (que, em Portugal, é interdito) que se pode estender de 10 a 14 dias ou mais além após o abate pelo que a classificação das carcaças, ainda que importante, não é garante de total exactidão no resultado degustativo final.

Conclusão

Como já referido, um consumidor mais exigente originará um produto de maior excelência. Se do ponto de vista social fará todo o sentido caminhar-se para uma sociedade mais e melhor informada, do ponto de vista económico – e em consonância com o discurso político actual – a existência e disponibilidade de carne de qualidade superior teria resultados apreciáveis tanto no sector do turismo como no das exportações (vejam-se os exemplos franceses, brasileiros ou australianos), Ora um consumidor, para ser exigente, necessitará de ter conhecimentos suficientes sobre a matéria, os quais mais facilmente serão apreendidos se colocados à sua disposição pela etiquetagem das peças. Assim, paralelamente a um sistema de corte nacional uniformizado e confirmado ou actualizado segundo o critério da qualidade expectável das peças de acordo com a sua morfologia e musculatura, defendo que o mesmo deverá estar integrado numa orgânica mais vasta que englobe
  • As exigências de criação do gado (já bastante desenvolvidas nas raças ou regiões abrangidas por DOP ou IGP;
  • As técnicas de abate (actualmente objecto de legislação aturada);
  • O referido sistema de corte e desmanche;
  • Um sistema de classificação de acordo com critérios de qualidade das peças e com o tipo de confecção adequado.




O todo comummente aceite e adoptado pela trilogia produtores/comerciantes/consumidores.

Para que um dia, não seja preciso sonhar com Kobe para disfrutar, com todos os sentidos, de uma carne tão magnífica quanto esta:




Bibliografia


  • (s.d.). Obtido em Janeiro de 2013, de Univers Boucherie: http://universboucherie.com/
  • Australia, M. a. (s.d.). Meat Standards Australia. Obtido de Meat and Livestock Australia: http://www.mla.com.au/Marketing-beef-and-lamb/Meat-Standards-Australia
  • Consulting, A. I. (2008). Review of the EU Carcase Classification System for Beef and Sheep.
  • J.M. Vivo, A. I. Atlas Virtual Anatomoaplicativo de la Canal de Vacuno con Interés para el Consumidor. Faculdad de Veterinaria de la UEX, Cáceres.
  • Murphy, J. (1795). Travels in Portugal. Londres.
  • Políticas, M. d.-G. (Janeiro de 2012). Produtos de Qualidade em Portugal - Carne de bovino. Obtido de Gabinete de Planeamento e Políticas: http://www.gpp.pt/Valor/pqual/?cat=2
  • Soares, I. (1959). Descrição Anatómica das Peças de Talho. Lisboa: Junta Nacional dos Produtos Pecuários.
  • Tim Wilson, F. W. (2011). Ginger Pig Meat Book. Mitchell Beazley.


Comentários

tecas disse…
Gostei muito deste artigo e, para concluir, o famoso bife das vaquinhas alimentadas a cerveja que frequentam diariamente o SPA, para umas massagens super relaxantes. Saudações gourmet :)
Marta disse…
Encontrei este post quando procurava qual o equivalente de um corte inglês em Portugal. Sou uma apaixonada por cozinha, o meu avô foi talhante toda a vida, assim como o meu pai que ainda é. Estou muitissimo habituada a ver carcaças, o processo de desmanche e corte e toda a terminologia usada. Tenho a saudar o post super informativo e correcto (pelo menos vai de acordo com os meus razoaveis conhecimentos teoricos sobre a anatomia do animal, bem como conhecimentos mais praticos sobre as peças, ainda que passados oralmente pelas gerações). Concordo de facto com a muita, enorme, falta de informação sobre este assunto. Lembro-me da antiga tabela de preços do talho do meu avô com todas os cortes mencionados e agrupados em "carne de primeira", "carne de segunda" e de terceira, e penso em como a evolução resultou em se pedir "carne para estudar com ervilhas" num talho! Se o profissional for informado, sabe qual a peça indicada e com melhor relação qualidade/preco. Se não for, corremos o risco de comprar uma peça desadequada, podendo ser mais cara, podendo ser de menor qualidade, etc. Consumidores não informados leva a profissionais que não veem interesse em saber os cortes e suas propriedades, iniciando aqui um ciclo descendente como o que se tem verificado. O pouco tempo que se tem para cozinhar os cortes que exigem um maior tempo de cozedura, o moderno amor pelo belo bife (e só o bife), e como até já ouvi, a crença de que "só as vacas brasileiras tem picanha" levam a uma desinformação descomunal e uma perpetuação desta triste realidade.
Em jeito de desabafo, nunca pensei continuar com o negocio da família, mas vendo esta arte do bem saber crescer animais, cortar e vender carne em declínio, quase me faz arrepender.
Um enorme cumprimento ao Pedro Gomes pelo post, continuarei a seguir o blog.
Bem haja
Pedro Cruz Gomes disse…
Olá, Marta, o seu comentário foi colocado pelo (algoritmo do?) Blogger na prateleira do spam, por isso só agora dei por ele. Obrigado pelas palavras e pela opinião. Não quer repensar a decisão de continuar o negócio de família? Ser, com certeza, cliente de talhante com ideias tão próximas das minhas! :-)
Unknown disse…
Incrível esta publicação. Sempre partilhei desta opinião e sempre me questionei sobre o porque da discrepância entre a variedade dos cortes internacionais (Inglaterra, Estados Unidos, etc) em relação ao que se encontra nos talhos e supermercados portugueses. Li as 3 partes da publicação e só fiquei com uma duvida: Existem talhos em portugal onde se pratique esse tipo de corte mais especifico? Obrigado e parabéns!

No último ano..