Artes Culinárias 6.0 - Por onde anda esta Lisboa?
"Não sei se a saudade é boa ou má; sei que é portuguesa", escrevi-o no topo do menu deste almoço, dedicado às memórias de Lisboa.
Saudade.
Desde, pelo menos, Proust que ficou oficializada a capacidade dos sabores para activar memórias longamente adormecidas.
Mas eu nunca comi fava rica - a cidade matou-a antes da minha chegada. E, no entanto, ao experimentar esta versão foi como se cada um dos sabores nela presentes me conduzissem numa viagem, não à volta do meu quarto, não na minha terra, mas àqueles fantasmas de momentos - alguns vividos, outros contados - há muito enterrados, quase esquecidos.
Sabores a saber a passados. A fava que é rugosa e me fazia torcer o nariz em casa da tia Pim, a Arroios; o alho, acre, como as escadas escuras do prédio do bisavô Melo, no Bairro Alto, que o meu pai, ainda criança, subia a contragosto, empurrado pelo seu pai, os cheiros dos almoços domingueiros dos vizinhos em cada patamar; o aroma do caldo, profundo como o corredor de 17 metros da casa da Latino Coelho, que me transportava até aos jantares de dias festivos; os enchidos, cheiro e sabor untuosos, como o cheiro da despensa da rua Ivens.

Lisboa da rua e dos pregões, dos almoços necessariamente substanciais e de baixo custo, para alimentar operários que à cidade acudiam numa base diária, sem poiso nem dinheiro para casas de pasto.
Já o "Corridinho" me apareceu como uma variante da "comida de p...", ovos com chouriço, um pot-pourri de várias referências, carne de porco alentejana incluída, saborosa - mas o que pode existir nesta preparação que alguém possa não gostar? Comida infantil, tétés mexidos com cubinhos de batata frita e carninha e pequenos pedaços para o menino não se engasgar...
Por momentos, o pastel de massa tenra pareceu-me saído das mãos da minha tia Lourdes, tal a correspondência do recheio. Depois, achei que não: a equipa tinha ido a correr comprar duas dúzias à Favorita da rua do Ouro, eram iguais, iguais.
(Infelizmente, a Favorita fechou há anos - assim como a lojinha de roupa mixuruca que a substituiu -, levando com ela os pasteis das minhas idas à Baixa.)
Não. Eram pasteis do presente mas aquele recheio foi arrancado aos segredos de família de alguma avó de mão cheia. Mais, mais, por favor.
(E os dois pareciam desenhar um delta e um ómega. Ou um DO. Denominação de origem: Lisboa)
Do José Alegrete não encontrei vestígios nas obras que conheço. Cozinheiro, grande garfo, dono de tasca, pertencente à parentela de um dos marqueses de Alegrete, morador no ex-palácio, reconstruído no pós-terramoto como prédio de rendimento de baixas rendas, alentejano migrante ou lisboeta retinto... todas as hipóteses são válidas, agora que a verdade se perdeu no tempo.
Que possibilidades na adaptação à linguagem contemporânea! A batata, em evocação das batatas bravas do Arola, mas com o uso de esparregado como recheio, completando assim a trilogia tradicional bacalhau-batatas-hortaliça.

Já a Porcalhota era um dos três lugares da povoação que um decreto de 1907 unificou sob a designação de Amadora. Eça, vencido não pela vida, mas pela gula, dela deixou registo em "Os Maias" e em "O Mistério da Estrada de Sintra", referindo-se, no primeiro livro, ao coelho da Porcalhota.
Coelho, cuja fama perdurou, deixando registo nestes versos populares:
Mais um prato de envolvência, a recordar-me o coelho à caçadora dos domingos lentos, o triângulo de pão frito, a dar textura e intenção à prevalente macieza do coelho.
Finalmente uma lembrança... dos livros da história culinária de Lisboa. A compilação de receitas mais antiga escrita em português, o denominado “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria” (neta de D. Manuel I, casada com Alessandro Farnèse, terceiro Duque de Parma e Piacenze, viva entre 1538 e 1577), apresenta uma receita de almojávenas, presente também no primeiro livro português de culinária, A Arte de Cozinha, publicado em 1680 por Domingos Rodrigues, mestre de cozinha d’El Rei Pedro II. Cem anos depois, apesar de renegar toda a herança contida no seu antecesso, Lucas Rigaud mantém as almojávenas, presentes, oito anos depois, no primeiro livro de doçaria portuguesa: Arte Nova e Curiosa, para Cozinheiros, Confeiteiros e Copeiros. Depois... obscuridade.
Doces de casa mas também doces bons para ir comendo à medida do andar, rua fora. Pasteis secos com requeijão, mel e canela, herança claramente mourisca - no nome e na composição - de um tempo em que o mel era o açúcar dos pobres.
Saudade.
Desde, pelo menos, Proust que ficou oficializada a capacidade dos sabores para activar memórias longamente adormecidas.
Mas eu nunca comi fava rica - a cidade matou-a antes da minha chegada. E, no entanto, ao experimentar esta versão foi como se cada um dos sabores nela presentes me conduzissem numa viagem, não à volta do meu quarto, não na minha terra, mas àqueles fantasmas de momentos - alguns vividos, outros contados - há muito enterrados, quase esquecidos.
Sabores a saber a passados. A fava que é rugosa e me fazia torcer o nariz em casa da tia Pim, a Arroios; o alho, acre, como as escadas escuras do prédio do bisavô Melo, no Bairro Alto, que o meu pai, ainda criança, subia a contragosto, empurrado pelo seu pai, os cheiros dos almoços domingueiros dos vizinhos em cada patamar; o aroma do caldo, profundo como o corredor de 17 metros da casa da Latino Coelho, que me transportava até aos jantares de dias festivos; os enchidos, cheiro e sabor untuosos, como o cheiro da despensa da rua Ivens.

Lisboa da rua e dos pregões, dos almoços necessariamente substanciais e de baixo custo, para alimentar operários que à cidade acudiam numa base diária, sem poiso nem dinheiro para casas de pasto.
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Vendedora de fava-rica (Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal, CML) |
Já o "Corridinho" me apareceu como uma variante da "comida de p...", ovos com chouriço, um pot-pourri de várias referências, carne de porco alentejana incluída, saborosa - mas o que pode existir nesta preparação que alguém possa não gostar? Comida infantil, tétés mexidos com cubinhos de batata frita e carninha e pequenos pedaços para o menino não se engasgar...
(Infelizmente, a Favorita fechou há anos - assim como a lojinha de roupa mixuruca que a substituiu -, levando com ela os pasteis das minhas idas à Baixa.)
Não. Eram pasteis do presente mas aquele recheio foi arrancado aos segredos de família de alguma avó de mão cheia. Mais, mais, por favor.
(E os dois pareciam desenhar um delta e um ómega. Ou um DO. Denominação de origem: Lisboa)
Do José Alegrete não encontrei vestígios nas obras que conheço. Cozinheiro, grande garfo, dono de tasca, pertencente à parentela de um dos marqueses de Alegrete, morador no ex-palácio, reconstruído no pós-terramoto como prédio de rendimento de baixas rendas, alentejano migrante ou lisboeta retinto... todas as hipóteses são válidas, agora que a verdade se perdeu no tempo.
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Edifício do antigo palácio do Marquês do Alegrete, ao lado do arco com o mesmo nome. Demolido em 1946 para dar origem ao que viria a ser a Praça Martim Moniz. |
Que possibilidades na adaptação à linguagem contemporânea! A batata, em evocação das batatas bravas do Arola, mas com o uso de esparregado como recheio, completando assim a trilogia tradicional bacalhau-batatas-hortaliça.

Já a Porcalhota era um dos três lugares da povoação que um decreto de 1907 unificou sob a designação de Amadora. Eça, vencido não pela vida, mas pela gula, dela deixou registo em "Os Maias" e em "O Mistério da Estrada de Sintra", referindo-se, no primeiro livro, ao coelho da Porcalhota.
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Prédio (já demolido) onde existiu, no 1º andar, o restaurante "Pedro dos Coelhos". (Fonte. com chapelada e agradecimento: http://sfraa.blogspot.pt/2009/01/arquivos-revisitados-da-porcalhota.html) |
Eu sou o coelho manso
um petisco preferido
com batatas pulo e danço
e com arroz sou envolvido.
Sou refogado bem misturado
com azeitonas e salada,
e vem gente de Lisboa
que grita sem hesitar:
«mate um coelho patroa!
E catrapuz... dá-me um ar».
Finalmente uma lembrança... dos livros da história culinária de Lisboa. A compilação de receitas mais antiga escrita em português, o denominado “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria” (neta de D. Manuel I, casada com Alessandro Farnèse, terceiro Duque de Parma e Piacenze, viva entre 1538 e 1577), apresenta uma receita de almojávenas, presente também no primeiro livro português de culinária, A Arte de Cozinha, publicado em 1680 por Domingos Rodrigues, mestre de cozinha d’El Rei Pedro II. Cem anos depois, apesar de renegar toda a herança contida no seu antecesso, Lucas Rigaud mantém as almojávenas, presentes, oito anos depois, no primeiro livro de doçaria portuguesa: Arte Nova e Curiosa, para Cozinheiros, Confeiteiros e Copeiros. Depois... obscuridade.
Doces de casa mas também doces bons para ir comendo à medida do andar, rua fora. Pasteis secos com requeijão, mel e canela, herança claramente mourisca - no nome e na composição - de um tempo em que o mel era o açúcar dos pobres.
Servidos aqui com doce de ovos, para lhe acentuar a gulodice, uma descoberta emergente das palavras e das memórias genéticas, porque às outras há muito que se tornou impossível aliar.
Em resumo, que óptima refeição a fechar estas lides da cozinha popular e regional! A provar que a cozinha não se mede pelo tipo antes pela qualidade de preparações e matérias-primas. Que o coração e a memória continuam a ser os mais preciosos aliados para uma festa de sentidos, festa que deverá ser o objectivo de cada refeição, de cada evento de união com esta, que nos serve e nos anima, comida.
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