Culinary Arts #3.06 - Mação


Mação é um concelho do centro do país, situado na antigamente oficial Beira Baixa e, no presente, na nomenclatura estatística europeia - que não adianta nada à nossa percepção -, na sub-região do Médio Tejo (desde 2013; anteriormente, na do Pinhal Interior Sul. Confusos?).

Gastronomicamente, apresenta características que são comuns aos dos municípios vizinhos (de uma mancha geográfica conhecida como Pinhal Interior), nomeadamente o uso da carne e derivados da cabra e ovelha (que, adaptando-se bem à geografia, asseguravam parte da riqueza produzida) para além do inevitável porco - o concelho é o maior produtor de presunto do país -, dos peixes do rio (lampreia e sável, achigã, enguias), Produz mel e azeite com abastança e, na doçaria local, destacam-se as Tigeladas de Cardigos, o Bolo finto, as Fofas de Mação (cavacas) e os Torrados.

Prestando-se à dupla condição de examinado e examinador, desceram à Escola, para este almoço, realizado com alguns dos produtos locais, alguns dos seus representantes municipais bem como uma componetrada e correspondente turma do Curso Profissional de Técnico de Restauração da EB2,3+S local sendo atribuídos, reciprocamente, calorosos summa cum laude.



Começo por adiantar que este foi um almoço sob a égide das memórias: não só a do concelho - das suas tradições culinárias, dos sabores de antanho, passados de geração para geração -, mas também as minhas, especialmente a da adoração por um manjar nunca mais experimentado, desde então sempre colocado na prateleira desconfiada do sabor: precisamente o que estrelava como peça principal do primeiro prato: mioleira.

E eis como os preconceitos racionais (racionais?) nos predispõem o gosto: porque é que, não o conhecendo (no meu caso, relembrando), haverão o sabor e ou a textura dos miolos ser desagradáveis quando comparados com as fibras musculares de qualquer outra parte do mesmo animal? Pura configuração mental.

Mesmo assim... confesso a minha apreensão face ao renovar de uma experiência longamente abandonada, nunca, por diversas razões (e a proibição ditada aquando da crise das "vacas loucas" foi só uma delas), retomada. Estaria enganada a minha felicidade infantil? Estaria certa a minha racionalidade?

Miolos com batatas à patife

Oh... felicidade absoluta que continuou no presente! A mioleira apresentou-se de uma cremosidade parecida com a do foie gras, contrastada com a textura do panado, uma experiência que desejei ter-se prolongado por mais tempo.

A acompanhar, uma criação de génio - batatas à patife - puré de batata com pedaços de pepino cru. O crocante do pepino no mar do puré é inesperado, funcionando a surpresa como despoletadora de um desafio - o que é isto, o que é esta sensação? Macio e denso, meloso e afirmativo, delicioso... A fazer muitas vezes, para consumo privado e alegria dos convidados.

Gracias e uma volta ao redondel.

No segundo prato, um velho amigo de renovada alegria em cada reencontro.Feitos com bucho de cabra, recheados com carne de cabra, cebola, presunto e arroz, condimentados com hortelã, colorau, salsa, os maranhos são cozinha de aproveitamentos elevada a suprema arte. Degustados com a variante de alface local - o almeirão -, mais arisca no sabor e na firmeza, foram aristocratas na distância que criaram e exigiram ser percorrida pelos presentes ate ao prazer final. Não são iguaria de primeira viagem antes amor antigo.

Maranhos e almeirão
Almeirão
Com o sável acompanhado com a açorda de ovas, voltou-se a caminho mais comummente percorrido ainda que não menos desejado. Mais uma vez o contraste de textura, a complementaridade de gostos, o toque subtil das ovas na consistência da açorda e na ligação de sabor. De fazer crescer água na boca, só a sua evocação.

sável e açorda de ovas

E para terminar os grandes pratos, enchidos locais e a fava, flor da horta, mais uma viagem ao sabor da memória, a pedir a boca preparada com goles de tinto rugoso e a ver reflectido nos sorrisos dos companheiros de viagem o deleite da prova.

Gargalhadas, suspiros e olhos semi-cerrados.

Favada
Nas sobremesas, uma tigelada superlativa, orientada pelo olhar severo do Mestre Diniz


Mexuda, tigelada 
e os bolos secos típicos, acabados de chegar com os representantes do homenageado concelho.




Fofas, bolo finto e broas de mel
Que bem se trabalha, neste país gastronómico.

Comentários

F.F. disse…
Continuas em grande Pedro. Este texto, muito bom,mas 1 ponto abaixo da costumeira excelência. Mesmo assim. 99 em 100..... desculpáveis, pelo reviver de emoções quase perdidas, num octogonal esquecimento..... O Vasco Santana diria, ..... compreendi-te !
E subscrevo a 1000 o orgásmico SABOREAR daquela mioleira. Nao corro riscos da loucura por causa da vaca......já estou a meio percurso.

No último ano..