O melancólico restaurante


De melancolia, está a alma de Lisboa cheia (essa alma que, sem o pedirmos, nos habita). A soturnidade do Cesário ("Nas nossas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.") ou a rebelião esquerda chic do Luís de Sttau Monteiro ("Perdi a batalha porque estou fora do meu tempo" - Angústia para o Jantar), são dois exemplos na maré de uma sociedade que, apesar do Sol e da luz da cidade, não se consegue dissociar do fatalismo genético, permeado pelo canto mudéjar transmutado em fado e pela vida, pelo acumular das pequenas e grandes desilusões que a todos, menos aos escolhidos, acontecem.

É a nossa sina, meninas e meninos, começarmos em alamedas de luz e acabrunharmos-nos nos desvãos, a lamber feridas, a termos pena de nós, das nossas decisões, das omissões dos outros, dos dominós ("Fiz de mim o que não soube,/ E o que podia fazer de mim não o fiz. / O dominó que vesti era errado. / Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. / Quando quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho, / Já tinha envelhecido. / Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. / Deitei fora a máscara e dormi no vestiário / Como um cão tolerado pela gerência / Por ser inofensivo / E vou escrever esta história para provar que sou sublime." ).


Há restaurantes assim. Habituei-me a eles nas ruas traseiras da Baixa, nos jantares desérticos das desertificadas zonas de escritórios, nos bairros em acelerado envelhecimento das gentes e dos prédios. Vidas em velocidade reduzida face à evolução da cidade, presentes já no passado, passados gloriosos, concorridos, que alimentaram, deram prazer, pagaram as contas, criaram a geração seguinte.


Começo, crescimento, apagamento, esperada morte. Mais tarde ou mais cedo, eis a expectativa de todo o negócio. Nada de assinalável, excepto para os próprios, que nela vêem (ou temem ver) um espelho de si.



O que é assinalável, nesta Lisboa brilhante, coroa do sucesso das políticas (e das omissões) urbanas e turísticas, é a velocidade de envelhecimento que muitos dos projectos restaurativos apresentam. É a concorrência que lhes assalta a vizinhança? A sede impreparada com que todos os aspirantes a empresário ou a celebridade culinária se lançam em negócios sem a correcta consistência? O deslumbramento que acompanha a exposição mediática, muitas vezes apressada e antes de tempo? As falsas ilusões vendidas por agências de comunicação ansiosas por justificar a sua presença e honorários ou por inesperadas audiências nas redes sociais, tão rápidas como voláteis no seu julgar?



Será tudo isso e mais. Também o deficit de atenção social, a continuada fome pela novidade e por novos estímulos, a ausência de relações de proximidade entre as casas e os clientes, desinteressados ambos, ocupados que estão a olhar para o seu umbigo.


Estive num destes restaurantes, há dias. Lá voltei, por acaso, menos de três anos de lá ter estado no seu começo, segundo muitos relatos cheio de brilhantismo, de promessas, de frescura. Hoje é um objecto apagado, morto já mas ainda sem o reconhecer. Preso a um menu fixo que poupa energias e dinheiro, em equilíbrio precário entre o food cost possível pelo preço pedido e a necessidade de fazer justiça ao nome que teve. Doses minimizadas, confecção aquém do sofrível, desastres de reaquecimento a estragar o pouco que ainda mereceria alguma - pouca... - atenção.

Porque morrem tão novos os ainda novos restaurantes, tão cedo e, no entanto, tão tarde?


Melancolia, melancolia, melancolia. Prematura mas, infelizmente, cada vez menos inesperada.

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