E agora, Tavares?
O Tavares, no princípio do século XX, antes e depois das obras de remodelação
(Fonte: Arquivo Fotográfico De Lisboa, CML)
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"Lisboa não é uma cidade monumental", lembro-me de iniciar assim a defesa de um trabalho académico de urbanismo e de imediatamente ser interrompido por um professor armado em erudito e convencido de que estava a examinar um candidato à Casa dos Segredos avant la lettre a perguntar-me
"Quando diz "monumental" está a referir-se a quê - ao cinema, aos monumentos?..."
e eu muito digno, muito verde, muito seco, a responder empertigado
"estou a referir-me à dimensão da cidade, senhor professor, à escala dos edifícios, à ausência quase total de edifícios de grandes dimensões que nos marquem os locais"
o que teve como resposta um sorriso seco a invocar o trio de examinadores do Vasquinho da Canção de Lisboa e o correspondente "ah!".
Mudando para a gastronomia, penso que todos concordamos que, apesar das estrelas que nos honram o presente e do hip que nos enche de turistas, nos faltam lugares monumentais, âncoras resistentes ao tempo e às modas, espaços sem tempo, momentos fixados de uma eternidade inventada pelos antepassados e que as décadas transformaram em História.
Simplificando: restaurantes onde a idade é um posto e a tradição ainda é o que era. Restaurantes onde não se vai pelos likes no Insta, os votos nos sites ou as crónicas no caderno semanal das novidades, antes para se relembrar memórias próprias ou herdadas, se aprender o passado e se situar o presente e a própria identidade.
Lugares assim, só me parece termos um, infelizmente muito tímido com o mundo (a ponto de eu, durante algum tempo, o julgar fechado para balanço): o Tavares.
Restaurante Tavares: interior (Fonte:Lojas com História) |
Um dos gabinetes privados (Fonte -Arquivo Fotográfico de Lisboa, CML) |
Traseiras do restaurante, com a entrada exclusiva para os gabinetes (Fonte -Arquivo Fotográfico de Lisboa, CML) |
(Fonte: Blog Restos de Colecção) |
Uma das histórias menos secretas que a sua História alberga é a do jantar dos pretensos sheiks do petróleo (não confundir com os quase contemporâneos Sheiks) que embasbacou os presentes, embaraçou o poder, teve honras de apoio policial e de artigos na imprensa internacional, corria o ano de 1971. (A coisa conta-se em poucas palavras e algumas imagens: um grupo de amigos, pessoal e familiarmente bem colocado nos poderes da nação, decidiu um dia pregar uma partida: disfarçar-se de "árabes" - um deles, o chef Michel da Costa utilizou um traje tradicional marroquino... - reservar mesa no Tavares e, em grande estilo, anunciar-se como milionários do petróleo, em Lisboa para negociações com o Governo. "Cacha" soprada a um jornalista, notícia no Século, preocupação na manhã seguinte os corredores do poder que desconheciam a coisa, interesse no New York Times, a descoberta da marosca, a investigação da polícia política, as ligações a impedirem o aperto, que poderia ter sido forte, aos foliões.)
Os "árabes" no Tavares (Fonte:livro Lx70, da autoria de Joana Stichini Varela) |
Espaço que viveu um tempo de agitação contemporânea com o consulado de José Avillez (que para ele obteve o merecido reconhecimento internacional com a estrela Mich) e a posterior presença de Aimé Barroyer mas que - acredito que pela falta de "ultra-músculo" financeiro - se deixou cair para a presente "meia-luz" no contexto da restauração nacional.
Restaurante Tavares: fachada (Fonte:Lojas com História) |
Acabado de comprar pelo grupo restaurativo (Multifood) que melhor entre nós parece aglomerar a capacidade financeira e a sageza gastronómica (o seu portfolio equilibra fine dining com food courts, desde os navios almirante Alma, Pesca, Sala de Corte, aos Honorato, Vitaminas, entre outros, não esquecendo a beleza gourmet do Delidelux) abrem-se-lhe assim novas perspectivas para reclamar o que é seu de direito: a liderança da sua classe, a monumentalidade que lhe é devida.
Não uma monumentalidade contemporânea, como foi tentado antes, onde não deixará de ser mais um - por muito bom que seja - antes a monumentalidade das suas memórias, dos ecos das conversas, do picante das aventuras proibidas nos gabinetes. A monumentalidade do classicismo, com a recuperação das receitas mais emblemáticas da Lisboa que lhe deu a fama, agrupando com saber, extrema técnica e sensibilidade a tradição francesa que influenciou a alta sociedade até há algumas décadas com a boa gastronomia da cidade. Uma espécie de alta cozinha clássica perfumada com o flavour português e, naturalmente, arejada com os mais contemporâneos instrumentos e técnicas e liderada por um chef executivo com a idade, a experiência, a cultura necessárias para levar a bom porto a gigantesca tarefa.
Ter-se-ia assim um lugar de referência, imune a modas, a pareceres, a fraquezas de gosto. Um rochedo, um farol. Uma certeza.
Será este o caminho a desbravar ou perder-se-à a oportunidade, continuando o Tavares a adiar o seu destino?
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