O género da cozinha
(Pensei em crismar este post "O sexo na cozinha". Desisti - já me basta ser gastrossexual, não quero que se sintam enganados com títulos chamativos.)
Mão amiga enviou-me um texto publicado no Instagram do Chef Thomas Keller. Da autoria de Melissa Caputo, sous-chef do seu restaurante Per Se, foi escrito na sequência do estágio da mesma no Arzak, em San Sebastian. Ei-lo:
Melissa Caputo (Fonte: Instagram / Chef Thomas Keller) |
"I chose Arzak because the restaurant, like the Basque region, has a strong matriarchal influence. Being around so many women chefs was very inspiring to me. At Per Se, we have more female chefs now than ever before, and I think the change in atmosphere and the dynamic of the restaurant has really benefitted from this shift.
This year has been really exciting. Not only am I expediting service, but, on a more personal level, I am expecting my first child. Four years ago, I never expected to rise this far in the kitchen. Initially, adjusting to such a rigorous and demanding kitchen was very difficult. The learning curve at Per Se is steep, but I continue to learn and grow as I help to supervise and manage all aspects of the kitchen. Per Se is a special environment where you can absorb and take so much from it, as long as you are willing to put in the time and effort.
I feel that my Per Se colleagues are my extended family, and I always try to treat them as such. I remember being mildly terrified when I started because of the sheer level of talent, so I am mindful of that adjustment period and reach out to the newer employees as a friendly face, someone they can feel comfortable asking any questions of or advice from. I want more co-workers to feel as comfortable and happy here as I do, so I try to make it feel as “home-y” as a three Michelin starred restaurant can.
My hopes and dreams for my daughter are that I can support her in whatever she wants to do. It was hard for my friends and family to understand why I wanted to become a chef. I graduated from NYU and originally wanted to be a fashion journalist, so to transition to the culinary world was a big jump for them. But those doubts just fueled me more, and I always try to surpass people’s expectations of me."
Texto pequeno, desabafo em forma de agradecimento, são tantos os níveis de abordagem que possibilita que, de cada vez que o leio, o interpreto de maneira diferente.
Gosto da coragem que revela (mas que é também um sinal dos tempos e do actual estado de graça da profissão que, em poucas décadas, passou dos confins dos restaurantes para o brilho do estrelato mediático) em ter abraçado uma carreira técnica depois de uma licenciatura em comunicação social.
Gosto das possibilidades de rápida progressão na carreira que, mesmo num restaurante de topo, a profissão possibilita aos mais talentosos e proactivos.
Mas o que me motivou a escrever foi a aparente defesa da existência de uma abordagem diferente ao mundo e às relações de trabalho, consoante o género do trabalhador.
Já tive oportunidade de tecer algumas considerações sobre o assunto na sequência do debate "Mulheres com Tomates" realizado o ano passado no âmbito da Lisbon Food Week, principalmente no que respeita à diferença de oportunidades e condições de carreira oferecidas a homens e mulheres. Hoje, não vou por aí. Interessa-me mais reflectir sobre a apregoada e comummente aceite diferença de visões e tratamento interpessoal e de gestão de equipas que homens e mulheres têm.
Não tenho dúvidas de que conforme o género é possível (tanto quanto as generalizações o permitem) diferenciar comportamentos, reacções, sensibilidades.
Também não tenho dúvidas de que a tradição de organização da brigada de uma cozinha (e falo essencialmente das cozinhas de topo), da hierarquização do trabalho à mecanização dos processos está historicamente enraizada num tempo em que o trabalho na mesma estava reservada a homens. Rigor, violência (pelo menos verbal), trabalho físico levado ao limite como numa espécie de bravata masculina de antes quebrar que torcer (muito do agrado das chefias que viam glorificada a sua gestão de custos e dos proprietários que assim maximizavam os lucros).
A entrada, muitas vezes mais por pressão dos tempos do que por vontade dos pares, do elemento feminino parecia vir, pelo menos em teoria, alterar alguns destes paradigmas. Uma cozinha mais matriarcal (como Melissa Caputo refere) pareceria trazer uma mudança na atmosfera e na dinâmica dos restaurantes.
De facto, como observador de alguma forma privilegiado tenho observado algumas cozinhas - das escolas profissionais aos restaurantes de fine dining - onde a presença feminina não só altera a dinâmica das equipas como traz novas visões e modos de solução de problemas e interacção entre pares que são altamente produtivos.
Mas... o que também tenho observado em variados casos é que a expressão "old habits die hard" (peço desculpa pelo meu francês...) tem aplicação plena nas cozinhas nacionais, sendo as próprias profissionais as primeiras a querer fazer seus os masculinos hábitos de violência verbal, abuso sobre os subalternos, aproveitamento descarado de trabalho gratuito (sem olhar a género) que tanto a propaganda feminista (e não só) pretende ver erradicados. (Ainda há poucos dias, uma chefe de cozinha se vangloriava no Facebook do efeito dos seus métodos disciplinadores no apregoado sucesso do restaurante onde trabalha).
Assim sendo, não estamos a falar de opções ou características de género - estamos a falar de EDUCAÇÂO e de VALORES que deveriam ser independentes do género e transversais a uma sociedade que se quer contemporânea, desenvolvida, igualitária e preocupada com todos os seus. Valores de respeito pelo próximo.
Valores de inteligência, digo eu, se concordarmos em que o sucesso de uma equipa é tanto maior quanto maior for o número dos seus elementos bem sucedidos...
E vocês? Que acham?
This year has been really exciting. Not only am I expediting service, but, on a more personal level, I am expecting my first child. Four years ago, I never expected to rise this far in the kitchen. Initially, adjusting to such a rigorous and demanding kitchen was very difficult. The learning curve at Per Se is steep, but I continue to learn and grow as I help to supervise and manage all aspects of the kitchen. Per Se is a special environment where you can absorb and take so much from it, as long as you are willing to put in the time and effort.
I feel that my Per Se colleagues are my extended family, and I always try to treat them as such. I remember being mildly terrified when I started because of the sheer level of talent, so I am mindful of that adjustment period and reach out to the newer employees as a friendly face, someone they can feel comfortable asking any questions of or advice from. I want more co-workers to feel as comfortable and happy here as I do, so I try to make it feel as “home-y” as a three Michelin starred restaurant can.
My hopes and dreams for my daughter are that I can support her in whatever she wants to do. It was hard for my friends and family to understand why I wanted to become a chef. I graduated from NYU and originally wanted to be a fashion journalist, so to transition to the culinary world was a big jump for them. But those doubts just fueled me more, and I always try to surpass people’s expectations of me."
Texto pequeno, desabafo em forma de agradecimento, são tantos os níveis de abordagem que possibilita que, de cada vez que o leio, o interpreto de maneira diferente.
Gosto da coragem que revela (mas que é também um sinal dos tempos e do actual estado de graça da profissão que, em poucas décadas, passou dos confins dos restaurantes para o brilho do estrelato mediático) em ter abraçado uma carreira técnica depois de uma licenciatura em comunicação social.
Gosto das possibilidades de rápida progressão na carreira que, mesmo num restaurante de topo, a profissão possibilita aos mais talentosos e proactivos.
Mas o que me motivou a escrever foi a aparente defesa da existência de uma abordagem diferente ao mundo e às relações de trabalho, consoante o género do trabalhador.
Já tive oportunidade de tecer algumas considerações sobre o assunto na sequência do debate "Mulheres com Tomates" realizado o ano passado no âmbito da Lisbon Food Week, principalmente no que respeita à diferença de oportunidades e condições de carreira oferecidas a homens e mulheres. Hoje, não vou por aí. Interessa-me mais reflectir sobre a apregoada e comummente aceite diferença de visões e tratamento interpessoal e de gestão de equipas que homens e mulheres têm.
Não tenho dúvidas de que conforme o género é possível (tanto quanto as generalizações o permitem) diferenciar comportamentos, reacções, sensibilidades.
Também não tenho dúvidas de que a tradição de organização da brigada de uma cozinha (e falo essencialmente das cozinhas de topo), da hierarquização do trabalho à mecanização dos processos está historicamente enraizada num tempo em que o trabalho na mesma estava reservada a homens. Rigor, violência (pelo menos verbal), trabalho físico levado ao limite como numa espécie de bravata masculina de antes quebrar que torcer (muito do agrado das chefias que viam glorificada a sua gestão de custos e dos proprietários que assim maximizavam os lucros).
A entrada, muitas vezes mais por pressão dos tempos do que por vontade dos pares, do elemento feminino parecia vir, pelo menos em teoria, alterar alguns destes paradigmas. Uma cozinha mais matriarcal (como Melissa Caputo refere) pareceria trazer uma mudança na atmosfera e na dinâmica dos restaurantes.
De facto, como observador de alguma forma privilegiado tenho observado algumas cozinhas - das escolas profissionais aos restaurantes de fine dining - onde a presença feminina não só altera a dinâmica das equipas como traz novas visões e modos de solução de problemas e interacção entre pares que são altamente produtivos.
Mas... o que também tenho observado em variados casos é que a expressão "old habits die hard" (peço desculpa pelo meu francês...) tem aplicação plena nas cozinhas nacionais, sendo as próprias profissionais as primeiras a querer fazer seus os masculinos hábitos de violência verbal, abuso sobre os subalternos, aproveitamento descarado de trabalho gratuito (sem olhar a género) que tanto a propaganda feminista (e não só) pretende ver erradicados. (Ainda há poucos dias, uma chefe de cozinha se vangloriava no Facebook do efeito dos seus métodos disciplinadores no apregoado sucesso do restaurante onde trabalha).
Assim sendo, não estamos a falar de opções ou características de género - estamos a falar de EDUCAÇÂO e de VALORES que deveriam ser independentes do género e transversais a uma sociedade que se quer contemporânea, desenvolvida, igualitária e preocupada com todos os seus. Valores de respeito pelo próximo.
Valores de inteligência, digo eu, se concordarmos em que o sucesso de uma equipa é tanto maior quanto maior for o número dos seus elementos bem sucedidos...
E vocês? Que acham?
Comentários
"Quer", quem? Até acredito que tu o queiras, mas não é de todo esse o caminho que a sociedade contemporânea está a seguir, nos países desenvolvidos. É mesmo o caminho contrário, e cada vez mais o é.