Lisboa, 1880, Gastronomia

E na Lisboa do final do século passado ter-se-iam como habituais os pratos a que hoje chamamos típicos e pelos quais derramamos tantas lágrimas de amizade?

Anúncio publicado n' A Semana de Lisboa nº 1, Jan 1893 (Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa)

"No mês de Novembro do ano de 1880, Lisboa recebeu pela primeira vez Camille Saint-Saëns. O músico apresentou-se na mais importante sala de ópera do país, o Teatro de S. Carlos, onde realizou quatro concertos. A presença de tal celebridade em Lisboa revestiu-se de uma aura de entusiasmo, mas nem tudo correria pelo melhor durante a sua estadia em Portugal. A imprensa portuguesa deu grande destaque à sua vinda e aos concertos e Rafael Bordalo Pinheiro não foi excepção."





Ao ler recentemente este texto, entrei em modo abstracção e descobri-me a imaginar a Lisboa de 1880. Eça de Queirós publicava O Crime do Padre Amaro utilizando a provinciana Leiria para amenizar a crueza do tema. Quanto à cidade, e apesar da mais tardia data de publicação de Os Maias acredito que a Lisboa nele retratada não seria muito diferente da existente em 1880. Nessa Lisboa caberiam com certeza os serões da alta sociedade, animados por sonatas "patetas", ditos espirituosos ou simplesmente bacocos, flirts descarados ou sub-reptícias ligações, retratados por Eça e neles se haveria de ter estreado o deambulante Saint-Saëns.



A impressão musical levou-me a uma viagem interior de regresso à Lisboa contemporânea da sua escrita. Como seria a capital do reino em 1880? Mais importante: como seria comer em Lisboa em 1880?

A cidade seria pouco maior do que o indicado nesta planta de 1871, concentrada à volta do Rossio e do Chiado,


e ainda à míngua de mercados "modernos" como os que seriam inaugurados pouco depois e que deixariam nome e lembrança até ao presente:

- O Mercado da Ribeira Nova (1882), edificado em estrutura de ferro, sob a qual se abrigavam as bancas de venda e que apresentava como grande novidade um corredor central onde se expunham as mercadorias com cuidados de higiene não existentes anteriormente.

O Mercado da Ribeira Nova, antes da construção do actual edifício (Fonte: Arquivo Fotográfico CML)

O edifício do mercado no princípio do século XX (Fonte: Arquivo Fotográfico CML)

- A praça (mercado) da Figueira (1883), para substituição da praça ao ar livre que servia de mercado desde 1775, igualmente com uma estrutura metálica, três naves, emblemáticas cúpulas em cada um dos seus vértices e lojas que abriam para o interior ou para o exterior. Com uma área de 8000 m2, passaria a ser, com o mercado da Ribeira Nova, um dos pólos mercantis da cidade.

O mercado ao ar livre. Veja-se, por detrás, o quarteirão da Suiça e as ruínas do convento do Carmo.
(Fonte: Arquivo Fotográfico CML)

O edifício do mercado da praça da Figueira

Duas referências, o segundo demolido no final dos anos quarenta do século XX (deixando um buraco urbano para o qual a Câmara de Lisboa inventa periodicamente soluções), o primeiro recauchutado com um food court na moda e que faz as delícias da maioria dos que visitam a cidade.

Às casas e aos estabelecimentos comerciais da cidade (aos hoteis, aos restaurantes) chegaria, por esse anos de oitenta, água em maior quantidade e qualidade, mercê da inauguração da Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos. Utilizando as águas captadas no rio Alviela, um afluente do Tejo, foi o instrumento para eliminar os graves problemas de abastecimento à parte oriental da cidade, funcionou, ininterruptamente, até 1928, sendo acompanhada por novos equipamentos, entre os quais o localizado no Largo do Chafariz de Dentro, no local onde hoje habita o Museu do Fado.

Falando de casas de comer, lembre-se um Rossio cheio de cafés (locais de quase exclusividade masculina, onde se discutiam por horas e de acordo com o estabelecimento, temas candentes da época, da política à literatura, da arte à música), uma rua do Ouro cheia de pastelarias, um Chiado com os melhores restaurantes (suplantando a crème de la crème da Baixa).

Desse Chiado centro-da-capital-centro-do-país, fixemo-nos no Grande Hotel do Mata que variou de morada, primeiro no palácio do largo, depois no Calhariz, onde ainda hoje está o edifício ocupado pela Caixa Geral de Depósitos. Pertenceu ao mais celebrado cozinheiro-empresário da segunda metade do século, João da Mata. Abrindo o seu primeiro restaurante em 1848 num primeiro andar de um edifício da rua do Alecrim e trabalhando até à última década do século, foi restaurador afamado, acarinhado pela elite social e intelectual da época e arauto de uma submissão ao gosto culinário francês que hoje nos parece no mínimo, excessivo (no máximo, bacoco) mas que ainda era escola no final do século XX .



Em 1880 gozaria há quatro anos da popularidade do seu livro Arte de Cozinha. "Ele tem feito de Lisboa a miniatura de Paris", garantia, orgulhoso, Alberto Pimentel, prefaciador da primeira edição. E mais encomiava: "O Sr Mata é, incontestavelmente, um reformador, e a palavra reformar tem o duplo sentido de sofrer e trabalhar. O Sr. Mata tem sofrido e trabalhado para ensinar a comer elegantemente os seus compatriotas, sem perigo de os estoirar. E à custa de sacrifícios, de lutas, de canseiras, conseguiu finalmente que um estrangeiro pudesse jantar em Portugal sem comer dobrada, orelheira e canja, o que faz com que todos os estrangeiros já não nos visitem receosos do porco e do arroz (...)". Literariamente comovido, Pimentel desejava o Olimpo ao seu prefaciado: "Se João da Mata se lembrar um dia de mandar construir o mais veleiro e o mais gracioso barco deste mundo e estabelecer nele um pequeno hotel fluvial, o menu será todos os dias de Ramalho Ortigão, e Mata haverá levado a sua arte até às alturas literárias a que ele deseja guindá-la - arte de tal modo florescente que vai ter em Portugal uma gramática devida ao primeiro cozinheiro do país, depois de haver tido em França um dicionário compilado pelo primeiro romancista europeu (*)"

Ramalho, esse companheiro de alguma da estrada queiroziana, celebrado "autor" de uma receita de batatas publicada no anterior "Cozinheiro dos Cozinheiros" de Paulo Plantier (1876) (que mais não eram que as pomme de terre souflées inventadas em França algumas décadas antes). Ramalho que também viria, mais tarde, a integrar o grupo Vencidos da Vida mas que, certamente, não falharia a frequência de um outro (já na altura) "clássico": o restaurante Tavares.

Para não alongar a prosa muito mais, termino com a Cervejaria Leão de Ouro, em 1880 quase quase a ser poiso oficial do Grupo do Leão, tertúlia de pintores de verve naturalista, com ambiente - e empregado famoso (num tempo em que era a sala que fazia a fama da casa...) com direito a imortalização do nome (Manuel Fidalgo) - fixado por mestre Columbano.

"O Grupo do Leão", tela de Columbano Bordalo Pinheiro de 1885 (Fonte: Wikipedia)
Não diferiria muito a casa do que a impressão de um autor de guias de viagem inglês escreveria vinte anos depois, em 1903:

"Se algum visitante de Lisboa estiver ansioso por experimentar a cozinha portuguesa, não poderá fazer melhor do que visitar o Leão d'Ouro, situado na Rua do Príncipe, ao lado da Estação Central de Caminho de Ferro. Este foi, e em grande medida ainda é, o local de encontro de actores, autores e profissionais. A comida é boa e muito barata, servida à carta. A comida portuguesa pode ser considerada como "altamente temperada", mas ainda assim existem muito bons pratos, sendo uma especialidade da casa a Sopa de Camarão, um bisque de camarões que, de modo nenhum, deve ser ignorada. No que respeita aos vinhos é recomendável beber os nacionais."

Retornemos ao presente e brindemos, melancólicos, a essa Lisboa de outras eras, num dos genuínos portugueses que ainda esperam a nossa visita, em risco de colapsar com as absurdas rendas que, irrequietas, tendem a não parar de subir...

(*) - Alberto Pimentel referia-se a Alexandre Dumas pai, autor do "Grand Dictionnaire de Cuisine" (publicado postumamente em 1873)

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